O ENEM e o controle ideológico da população

Um exame que foi pensado como mero indicador de qualidade acadêmica
transformou-se num forte instrumento de controle, inclusive
ideológico, de acesso ao ensino superior. E já está sendo usado para
consolidar a ideologia de gênero

Brasilia, 27 de Outubro de 2015 (ZENIT.org) Paulo Vasconcelos Jacobina

Nunca houve, na história do Brasil, um instrumento potencialmente tão
completo, em termos de dominação ideológica do país, como o ENEM. De
fato, ele é, hoje, basicamente a única porta de acesso a todo o ensino
superior e a toda a estrutura de pós-graduação no país – vale dizer,
quem não estiver preparado para demonstrar não somente qualidade
acadêmica, mas também afinação com os pressupostos ideológicos que
regem os elaboradores e corretores do exame está condenado a não obter
vaga nas universidades, ou ao menos privar-se das universidades de
maior qualidade e dos cursos mais procurados.

Não se trata de discutir se o ENEM é ou não um instrumento pedagógico
tecnicamente bom. Possivelmente ele é, e isto não diz nada em seu
favor: são exatamente os instrumentos bons os que são mais aptos de
produzir danos enormes quando mal utilizados. Uma faca extremamente
afiada é um instrumento soberbo para um bom churrasco, mas é também
uma arma letal nas mãos de um assassino. Há uma confusão básica –
também no campo da educação – entre ética e técnica, como se o avanço
técnico da ciência pudesse influir diretamente, ou mesmo determinar,
as fronteiras da ética.

Neste ponto, há que se frisar: nenhum governo autoritário do Brasil
jamais dispôs de um instrumento tão completo, abrangente e eficaz, no
plano do controle ideológico, como é o ENEM. Para o bem ou para o mal.
Trata-se, como disse, de condicionar o acesso a todo o ensino superior
à porta única de entrada que é este exame. E que, é claro, submete-se
(potencialmente ao menos, senão em ato) a um grande controle
ideológico sob o ângulo de certos consensos acadêmicos e midiáticos
que estão bem estabelecidos, hoje, no nosso país e no mundo.

Dou um exemplo: há uma grande discussão, hoje, sobre a verdadeira
noção de “identidade sexual”. Tradicionalmente, sempre se entendeu que
a “identidade sexual” do ser humano é binária: somos homens e
mulheres, e as exceções clínicas, raríssimas, somente confirmavam a
regra. Há, é claro, (e tradicionalmente se entendia assim) o campo das
tendências, inclinações, desejos e opções sexuais, mas estes não
faziam parte da própria identidade sexual, da substância da pessoa
humana, senão do campo dos condicionamentos e das escolhas, das opções
e vivências culturais e pessoais, na riqueza da sexualidade humana.
Compreendia-se que havia homens e mulheres, e que havia diversas
maneiras e modos de se viver na prática a sexualidade, sem que tais
maneiras e modos passassem a integrar a própria noção de identidade
sexual. É assim que a Declaração Universal de Direitos Humanos, já nos
seus “consideranda”, fala em “dignidade e valor do ser humano e na
igualdade de direitos entre homens e mulheres”, ou em vedação de
“distinção de sexo”, já no seu artigo 2º. É assim, também, que no seu
art. 16, reconhece-se que “Os homens e mulheres de maior idade, sem
qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito
de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos
em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução”. Para a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, portanto, a questão de uma
“identidade sexual” diversa do sexo das pessoas nem sequer se
colocava. Éramos, e sempre fomos, homens e mulheres. Ponto. Todo o
resto estava no campo dos condicionamentos, das escolhas, das
tendências e desvios, alguns publicamente reprimidos, como a
pedofilia, alguns simplesmente tolerados, como a promiscuidade, outros
estimulados, em função do seu interesse para todos, como a formação de
famílias complementares e fecundas. E as coisas foram assim até pelo
menos os anos setenta.

O advento da ideologia do gênero.

De repente, embalados por estudos pretensamente científicos e suas
interpretações filosóficas ou pseudoéticas, de pensadores como Wilhelm
Reich, Marcuse, Simone de Beauvoir, Foucault, Shulamith Firestone ou
Judith Butler, só para citar alguns, a “identidade sexual” passou a
incorporar em si não somente a condição de homens e mulheres, mas as
próprias tendências, escolhas, condicionamentos ou desvios, fazendo
com que o lado estritamente subjetivo da sexualidade humana
prevalecesse sobre a objetividade da convivência pública, e inserindo
no campo da dignidade da pessoa humana a ser tutelada pelo Estado
aquilo que, anteriormente, estava no âmbito da estrita variabilidade
pessoal, com todo o grau de conforto ou desconforto que as situações
concretas determinavam.

Assim, ser, digamos, somente para exemplificar, um pedófilo, um
estuprador, um heterossexual promíscuo, ou mutilar-se física e
hormonalmente com o fito de simular um sexo biológico diverso daquele
que sua pessoa recebeu pelo nascimento, dentre outras tendências
sexuais possíveis, tudo isto transportou-se de onde estava
originalmente (do plano das tendências, dos condicionamentos e das
escolhas comportamentais) para o campo da própria identidade sexual
substancial da pessoa humana, a ser pretensamente tutelada pela
legislação que protege a dignidade da pessoa humana. E sob as penas de
criminalizar-se como homofóbico o pensamento de quem insiste na
concepção histórica e consentânea com a própria Declaração Universal
dos Direitos Humanos da ONU de que a identidade sexual, quanto à
substância da pessoa humana, diz respeito apenas à condição de sermos
homens e mulheres. Tudo o mais tem, é certo, reflexos importantes na
tutela da pessoa humana, mas não definiria, conforme sempre se pensou
até a instalação hegemônica do pensamento contrário no âmbito de um
certo “consenso acadêmico” e “jurídico”, identidade substancial de
ninguém.

Quais as consequências sociais dessa ideologia.

As consequências práticas estão aí, e tornam impossível adotar a
postura do “viva e deixe viver” que a maior parte dos pais,
educadores, operadores e mesmo pessoas religiosas estão adotando. Não
se trata de dizer: “ora, se você não concorda com isso, viva a sua
vida e deixe que os outros vivam, afinal esta é uma sociedade
democrática e plural”. Não é tão simples assim: definir que tendências
e inclinações sexuais definem a própria identidade sexual para fins de
tutela da dignidade da pessoa humana significa dizer, entre outras
coisas, que os banheiros públicos já não terão mais, como critério de
uso, a fisiologia excretora dos usuários, mas a sua “identidade
sexual” definida pela “tendência” ou “inclinação” que ele escolhe ou
encontra em si mesmo. Assim, em vez de usar um banheiro público
conforme ao seu aparelho excretor, ele o usará conforme a sua
“identidade sexual”, num grande quiproquó: o banheiro não será mais
espaço de atendimento de necessidades fisiológicas determinadas pela
biologia, mas espaço de afirmação de tendências ou inclinações sexuais
elevadas ao grau de dignidade da pessoa humana. Não se trata, pois, de
construir mais banheiros, digamos, terceiros ou quartos banheiros,
para aqueles cuja escolha identitária sexual não coincide com a
fisiologia excretora, por nascimento ou por mutilação cirúrgica, mas
de compelir a todos, mesmo aqueles que ainda acreditam no texto
original da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, a dividir o
banheiro não pelo critério da conformação excretora, mas da tendência
ou inclinação sexual, inclusive e principalmente quando esta não
coincidir com o aparelho excretor. A proposta, portanto, é de
reeducação global impositiva estatalmente, inclusive por meios
criminais, para tornar hegemônico aquilo que certo consenso acadêmico
e jurídico vê como avanço social e civilizatório, tornando impossível
sequer manifestar opinião contrária. Que seria, segundo eles,
afrontosa aos direitos humanos e à dignidade da pessoa, e portanto,
uma opinião que até outro dia fazia parte do próprio texto da
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU passa a ser quase uma
opinião bandida.E banida.

Os reflexos práticos das opções estatais nas liberdades públicas.

Imaginemos, agora, uma ação judicial coletiva que vise forçar as
escolas confessionais do país inteiro a permitir, ou mesmo a impor,
que suas crianças, meninos ou meninas, dividam o banheiro com pessoas
adultas cuja “inclinação” ou tendência” não coincida com o respectivo
aparelho excretor. Isto simplesmente inviabilizaria, no limite, a
própria existência de espaços confessionais abertos ao público,
remetendo a religiosidade humana exatamente para onde estes mesmos
ideólogos sempre propuseram que ela deveria estar: no âmbito do
estritamente privado e fechado. E onde estamos? Basicamente calados.

Ora, o que se vê, mesmo, digamos, em certos âmbitos educacionais e
confessionais, não é simplesmente uma preparação para conviver – e
formar nossos filhos para conviver – com uma sociedade
majoritariamente adversa. Trata-se de estar muitas vezes cegos para o
que parece ser um discurso de “direitos humanos” e “militância”
social, ou mesmo empolgados com tais perspectivas, promovendo-as até
mesmo como deveres para um cristão, jovem ou idoso. E vemos educadores
católicos, padres, bispos e entidades religiosas promovendo,
orgulhosos, encontros, debates e passeatas para promover a defesa
destas posições como se fossem a defesa de “oprimidos e
marginalizados”, numa postura pouco coerente. Mas parece que ainda
vivemos uma época, mesmo em certos âmbitos religiosos institucionais,
em que palavras de ordem valem mais do que a Bíblia e o Catecismo. Não
há nada mais importante do que ter critérios. E é exatamente de
critérios que estamos nos tornando paupérrimos.

Voltemos então para o ENEM. Não é de estranhar que Simone de Beauvoir
tenha sido tema no último exame. Nem quero imaginar o que ocorreria
com os estudantes que ousassem lê-la, na prova, de maneira diversa dos
tais “consensos acadêmicos”. Muito poucos, é certo, conseguiriam,
porque já foram devidamente doutrinados para fazer o exame, e nem
sequer sabem que há a possibilidade de uma leitura diversa daquela que
o Exame espera deles. Mas e quanto aos que pensam diversamente?
Dobram-se à ideologia vigente ou estão fora do mundo do ensino
superior de qualidade. É uma arma poderosa.

(27 de Outubro de 2015) © Innovative Media Inc.

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