O que o autor de ‘O Senhor dos Anéis’ pensava sobre o casamento

Carta de J. R. R. Tolkien para o seu filho Michael revela visão profundamente cristã e realista do escritor a respeito do matrimônio. “A fidelidade no casamento cristão”, ele admite, “acarreta em grande mortificação”.

Além de escrever com excelência, J. R. R. Tolkien – o autor de “O Senhor dos Anéis”, “O Hobbit” e “O Sillmarillion” – foi também um devotado católico e dedicado pai de família. É o que se percebe pela leitura de suas obras e, sobretudo, de suas biografias e cartas pessoais.

Uma delas, endereçada a seu filho Michael [1], é de grande preciosidade. Contém a visão nitidamente cristã de Tolkien em relação ao casamento e lança uma luz extraordinária na doutrina moral da Igreja sobre a sexualidade.

Companheiros em um naufrágio

A carta em questão foi escrita em março de 1941 e descreve todo um itinerário do relacionamento entre homem e mulher, desde a clássica distinção entre os tipos de amor até a redenção do casamento por Jesus.

Tolkien começa sua narrativa pela famosa história da Queda:

” Este é um mundo decaído. A desarticulação do instinto sexual é um dos principais sintomas da Queda. O mundo tem ‘ido de mal a pior’ ao longo das eras. As várias formas sociais mudam, e cada novo modo tem seus perigos especiais: mas o ‘duro espírito da concupiscência’ vem caminhando por todas as ruas, e se instalou em todas as casas, desde que Adão caiu.”
O romantismo do autor d’O Senhor dos Anéis não obscurece a visão que ele tem da realidade. Estamos marcados pelo pecado original e, nessa condição, não só o ser humano é capaz de ter sexo sem levar em conta o espírito da pessoa com quem se envolve – “para o grande dano de sua alma (e corpo)” –, como a própria relação de amizade “que deveria ser possível entre todos os seres humanos é praticamente impossível entre um homem e uma mulher”:

“O diabo é incessantemente engenhoso, e o sexo é seu assunto favorito. Ele é da mesma forma bom tanto em cativá-lo através de generosos motivos românticos ou ternos quanto através daqueles mais vis ou mais animais. Essa ‘amizade’ tem sido tentada com freqüência: um dos dois lados quase sempre falha. Mais tarde na vida, quando o sexo esfria, tal amizade pode ser possível. Ela pode ocorrer entre santos. Para as pessoas comuns ela só pode ocorrer raramente: duas almas que realmente possuam uma afinidade essencialmente espiritual e mental podem acidentalmente residir em um corpo masculino e em um feminino e ainda assim podem desejar e alcançar uma ‘amizade’ totalmente independente de sexo. Porém, ninguém pode contar com isso.”
Na “romântica tradição cavalheiresca” – nota Tolkien –, é possível perceber uma relativa dose de virtudes humanas, que fazem o amor meramente natural desfrutar, “se não de pureza, pelo menos de fidelidade, abnegação, ‘serviço’, cortesia, honra e coragem”. Só isso, porém, não é suficiente para remir a sexualidade de sua decadência. Esse amor “pode ser muito nobre”, ele admite, mas:

” Ele tende a tornar a Dama uma espécie de divindade ou estrela guia (…). Isso é falso, é claro, e na melhor das hipóteses fictício. A mulher é outro ser humano decaído com uma alma em perigo.

Ele leva (ou, de qualquer maneira, levou no passado) o rapaz a não ver as mulheres como elas realmente são, como companheiras em um naufrágio, e não como estrelas guias.

Um resultado observado é que na verdade ele faz com que o rapaz torne-se cínico. Leva-o a esquecer os desejos, necessidades e tentações delas. Impõe noções exageradas de ‘amor verdadeiro’, como um fogo vindo de fora, uma exaltação permanente, não-relacionado à idade, à gestação e à vida simples, e não-relacionado à vontade e ao propósito.

Um resultado disso é fazer com que os jovens — homens e mulheres — procurem por um ‘amor’ que os manterá sempre bem e aquecidos em um mundo frio, sem qualquer esforço da parte deles; e o romântico incurável continua procurando até mesmo na sordidez das cortes de divórcio.”
A graça que aperfeiçoa a natureza

” Gratia non tollit, sed perficit naturam – a graça não destrói a natureza, mas a leva à perfeição” [2], ensina Santo Tomás de Aquino. Assim também, a Redenção operada por Jesus não transforma o casamento de modo “mágico”, como se todos os defeitos de nossa natureza decaída sumissem num estalar de dedos. Tolkien mostra compreender bem isso, quando, ao falar sobre o casamento à luz da graça, explica em que consiste a natureza, tanto do homem, quanto da mulher:

“Você pode encontrar na vida (como na literatura) mulheres que são volúveis, ou mesmo puramente libertinas — não me refiro a um simples flerte, o treino para o combate real, mas às mulheres que são tolas demais até mesmo para levar o amor a sério, ou que são de fato tão depravadas ao ponto de desfrutar as ‘conquistas’, ou mesmo que apreciem causar dor — mas essas são anormalidades, embora falsos ensinamentos, uma má criação e costumes deturpados possam encorajá-las.

Muito embora as condições modernas tenham modificado as circunstâncias femininas, e o detalhe do que é considerado decoro, elas não modificaram o instinto natural. (…) Uma mulher jovem, mesmo uma ‘economicamente independente’, como dizem agora ( o que na verdade geralmente significa subserviência econômica a empregadores masculinos ao invés de subserviência a um pai ou a uma família), começa a pensar no ‘enxoval’ e a sonhar com um lar quase que imediatamente. Se ela realmente se apaixonar, o navio naufragado pode de fato acabar nas rochas.

De qualquer maneira, as mulheres são em geral muito menos românticas e mais práticas. Não se iluda com o fato de que elas são mais ‘sentimentais’ no uso das palavras — mais espontâneas com ‘querido’ e coisas do gênero. Elas não querem uma estrela guia. Elas podem idealizar um simples jovem como um herói, mas elas não precisam realmente de tal deslumbramento tanto para se apaixonarem como para permanecerem assim. Se elas possuem alguma ilusão, é a de que podem ‘remodelar’ os homens. Elas aceitarão conscientemente um canalha e, mesmo quando a ilusão de reformá-lo mostrar-se vã, continuarão a amá-lo.

Elas são, é claro, muito mais realistas sobre a relação sexual. A não ser que sejam corrompidas por péssimos costumes contemporâneos, elas via de regra não falam de modo ‘obsceno’; não porque sejam mais puras do que os homens (elas não são), mas porque não acham isso engraçado. Conheci aquelas que aparentavam achar isso engraçado, mas é fingimento. Tais coisas podem lhes ser intrigantes, interessantes, atraentes (em boa parte atraentes demais): mas é um interesse natural honesto, sério e óbvio; onde está a graça?

Elas precisam, é claro, ser ainda mais cuidadosas nas relações sexuais (…). Erros lhes causam danos física e socialmente (e matrimonialmente). Mas elas são instintivamente monogâmicas, quando não-corrompidas.
Os homens não são. Não há por que fingir. Os homens simplesmente não o são, não por sua natureza animal. A monogamia (ainda que há muito venha sendo fundamental às nossas idéias herdadas) é para nós, homens, uma porção de ética ‘revelada’, em concordância com a fé e não com a carne. Cada um de nós poderia gerar de forma saudável, por volta dos nossos 30 anos, algumas centenas de filhos e apreciar o processo.”
“Para um homem cristão, não há saída”

“Este é um mundo decaído, e não há consonância entre nossos corpos, mentes e almas. Entretanto, a essência de um mundo decaído é que o melhor não pode ser alcançado através do divertimento livre, ou pelo o que é chamado ‘auto-realização’ (em geral um belo nome para auto-indulgência, completamente hostil à realização de outros aspectos da personalidade), mas pela negação, pelo sofrimento. A fidelidade no casamento cristão acarreta nisto: grande mortificação.

Para um homem cristão não há saída. O casamento pode ajudar a santificar e direcionar os desejos sexuais dele ao seu objeto apropriado; a graça de tal casamento pode ajudá-lo na luta, mas a luta permanece. A graça não irá satisfazê-lo — tal como a fome pode ser mantida à distância com refeições regulares. Ela oferecerá tantas dificuldades à pureza própria desse estado quanto fornece facilidades. Homem algum, por mais que amasse verdadeiramente sua noiva quando jovem, viveu fiel a ela como esposa na mente e no corpo, sem um exercício consciente e deliberado da vontade, sem abnegação. Isso é dito a poucos — mesmo àqueles educados ‘na Igreja’. Aqueles de fora parecem que raramente ouviram tal coisa.

Quando o deslumbramento desaparece, ou simplesmente diminui, eles acham que cometeram um erro, e que a verdadeira alma gêmea ainda está para ser encontrada. A verdadeira alma gêmea com muita freqüência mostra-se como sendo a próxima pessoa sexualmente atrativa que aparecer. Alguém com quem poderiam de fato ter casado de uma maneira muito proveitosa ‘se ao menos…’. Por isso o divórcio, para fornecer o ‘se ao menos…’.

E, é claro, via de regra eles estão bastante certos: eles cometeram um erro. Apenas um homem muito sábio no fim de sua vida poderia fazer um julgamento seguro a respeito de com quem, entre todas as oportunidades possíveis, ele deveria ter casado da maneira mais proveitosa! Quase todos os casamentos, mesmo os felizes, são erros: no sentido de que quase certamente (em um mundo mais perfeito, ou mesmo com um pouco mais de cuidado neste mundo muito imperfeito) ambos os parceiros poderiam ter encontrado companheiros mais adequados.

Mas a ‘verdadeira alma gêmea’ é aquela com a qual você realmente está casado. Na verdade, você faz muito pouco ao escolher: a vida e as circunstâncias encarregam-se da maior parte (apesar de que, se há um Deus, esses devem ser Seus instrumentos ou Suas aparências). (…) Neste mundo decaído, temos como nossos únicos guias a prudência, a sabedoria (rara na juventude, tardia com a idade), um coração puro e fidelidade de vontade.”
Conselhos de um homem casado

J. R. R. Tolkien, como se sabe, foi um homem casado. Tendo vivido em boa parte do século XX, o escritor presenciou a reascensão do divórcio no mundo, mas, em sua sabedoria, decidiu não participar da confusão. O casamento dele com Edith Bratt durou 55 longos anos, até que a morte os separasse.

Desde o princípio, porém, ele havia compreendido que o amor está necessariamente ligado à renúncia e à abnegação de si mesmo. Quando conheceu Edith, aos 16 anos, ele ficou instantaneamente encantado e chegou mesmo a começar um namoro com a moça. O seu “guardião” e pai espiritual, no entanto, temendo que o romance atrapalhasse a sua formação, aconselhou-o a não mais ver Edith, até que ele chegasse à maioridade.

“Tive de escolher entre desobedecer e magoar (ou enganar) um guardião que havia sido um pai para mim, mais do que a maioria dos pais verdadeiros, mas sem qualquer obrigação, e ‘desistir’ do caso de amor até que eu completasse 21”, ele escreve. “Não me arrependo de minha decisão, embora ela tenha sido muito difícil (…). Por quase três anos eu não vi ou escrevi à minha amada. Foi extremamente difícil, doloroso e amargo.”

Com 24 anos, eles finalmente se casaram e deram início a um relacionamento feliz e duradouro, do qual vieram quatro filhos: John (que se tornou padre), Michael, Christopher e Priscilla.

Numa época em que membros do próprio clero veem (e chegam a pregar) a castidade como algo inatingível, as palavras de Tolkien são uma lufada de ar fresco para muitos jovens casais que querem entregar-se a Deus pelo sacramento do Matrimônio. Mostram que continua sendo um erro gravíssimo concluir “que a norma ensinada pela Igreja é em si própria apenas um ‘ideal’ que deve posteriormente ser adaptado, proporcionado, graduado” [3], como se Deus nos mandasse o impossível e o impraticável.

Com as nossas próprias forças, é verdade, a luta pela pureza e pela perfeição será sempre árdua e praticamente fadada ao fracasso. Com a graça de Deus, no entanto, ela não só é possível, como deve ser a meta para a qual caminhamos com sempre maiores amor e fervor.

“Cristo redimiu-nos!”: brada o Papa São João Paulo II, em sua encíclica Veritatis Splendor [3]. Mais que filhos de Adão e Eva, somos, agora, filhos de Jesus e Maria! Percorramos, pois, confiante e generosamente o caminho da Cruz, que, neste mundo, é o único caminho para amarmos a Deus.

Escutemos, por fim, um último conselho do autor d’O Senhor dos Anéis a seu filho, Michael, e vejamos se não são as palavras acaloradas de um pai que ama o seu filho e quer vê-lo no Céu:

“Da escuridão da minha vida, tão frustrada, coloco diante de você a única grande coisa para se amar sobre a terra: o Santíssimo Sacramento. Nele você encontrará romance, glória, honra, fidelidade e o verdadeiro caminho de todos os seus amores sobre a terra. Mais do que isso, você encontrará a Morte: pelo divino paradoxo, o qual encerra a vida e demanda a entrega total; e ainda pelo único gosto (ou antegosto) do qual o que você procura em seus relacionamentos terrenos (amor, fidelidade, alegria) pode ser mantido ou tomar aquela compleição de realidade – de duração eterna – que todo coração humano deseja.”
Por Equipe Christo Nihil Praeponere

Referências

Carta n. 43, a Michael Tolkien (6-8 de março de 1941). In: As Cartas de J. R. R. Tolkien (org. de Humphrey Carpenter e trad. de Gabriel Oliva Brum). Curitiba: Arte & Letra, 2006.
Suma Teológica, I, q. 1, a. 8, ad 2.
Carta Encíclica Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 103.

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