Pe. José Eduardo comenta as manifestações blasfemas nos desfiles deste ano

Em seu Facebook pessoal, o pe. José Eduardo Oliveira compartilhou o seguinte comentário a propósito de mais um carnaval em que se insistiu em agredir a fé católica sob a ubíqua desculpa da liberdade de expressão.
DE ONDE VEM O “EVANGELHO” DA SAPUCAÍ
(Escrevi este texto rapidamente, sem muito capricho; é meio longo, mas acredito que a leitura possa ser instrutiva).

1. Um falso evangelho

Existem questões em que não é possível transigir sem trair a própria consciência, assim como há ensinos que não se podem tolerar sem sacrificar a integridade da verdade. Para um cristão, o mais importante, aquilo que está acima de tudo, é a custódia da essência do Evangelho, pois dele depende a nossa salvação individual e a dos demais seres humanos.

Era esta clarividência que constrangia São Paulo a manifestar sem hesitação a sua tempestuosa repreensão à comunidade dos gálatas: “Admiro-me de que, tão depressa, abandonando aquele que vos chamou na graça de Cristo, tenhais passado a outro evangelho” (Gl 1,6). Ele acusa aqueles que tentam “corromper o Evangelho de Cristo” (Gl 1,7) e diz por duas vezes que quem o fizer, mesmo que seja um anjo do céu, “é anátema” (Gl 1,8), isto é, excomungado. O Apóstolo chega a repreender São Pedro por sua dissimulação (cf. Gl 2,11-15) e diz que os gálatas, depois de terem “começado no espírito, terminam na carne” (Gl 3,6).

Toda a Epístola é uma chuva de repreensões contra a leviandade de se passar a um outro “evangelho”.

2. Restrição seletiva dos conteúdos do Evangelho

Nos últimos dias, os cristãos do Brasil mais uma vez foram provocados através das manifestações blasfemas de uma escola de samba que usou a imagem Cristo identificando-a com aquilo que os marxistas chamam de lumpemproletariado, o extrato maltrapilho da sociedade, e tudo naquele conhecido contexto de sincretismo e sensualidade que caracterizam o carnaval. Até aqui, sem novidades. Infelizmente, a blasfêmia e o sacrilégio são bastante habituais nestes ambientes contestatórios das raízes cristãs da sociedade.

O problema real começa quando vemos pessoas cristãs que apresentam tais manifestações como expressão da Palavra de Deus, a tal ponto de atribuir-lhes a alcunha de “O Evangelho da Sapucaí”. Como isso é possível? Por que estas pessoas não conseguem enxergar que este não é o Cristo da Revelação? Qual a dificuldade de perceberem que Cristo não foi anunciado, mas usado para promover ideologias, num caldo de depravação e excessos que, antes de honrá-lo, o ultrajam, juntamente com todos os seus discípulos?

Deixando de lado a cegueira política de quem se esqueceu de Deus e o trocou por um partido, precisamos perceber que restringir o Evangelho a certos conteúdos humanistas, apresentando-os como se fossem o todo, é o modo mais fácil de pervertê-lo, ainda mais quando, com isto, se induz as pessoas ao pecado, à transgressão de todos os dez mandamentos. Escolhe-se dos conteúdos do Evangelho o que mais se adapta à própria ideologia e silenciam-se os conteúdos incômodos. Mas o problema fica ainda mais nítido quando nos confrontamos justamente com o todo do Evangelho.

3. A essência do Evangelho

Ao contrário daquilo que apregoa a ideologia naturalista e similares, o Evangelho não é uma mera ética de inspiração religiosa que engaja os seres humanos num projeto idealista (vale dizer, utópico) de sociedade.

Como dizia Santo Agostinho, “o que são, portanto, as leis de Deus escritas por ele mesmo nos corações senão a própria presença do Espírito Santo, que é o Dedo de Deus e que, com a sua presença, derrama em nossos corações a caridade, que é o cumprimento da lei e o seu têrmo? As promessas do Velho Testamento são terrenas. (…) Agora, prometem-se os bens do próprio coração, o bem da mente, o bem do espírito, isto é, um bem não material, quando se diz: ‘eu colocarei as minhas leis na sua mente e a inscreverei no seu coração’. Com isto faz entender que não seriam subjugados pelo medo de uma lei que aterroriza desde fora, mas pelo amor da própria justiça da lei que habita no interior” (AGOSTINHO, S., De spiritu et littera, n. 36).

Na mesma linha, São Tomás de Aquino ensina que “o principal na lei do Novo Testamento e no que está toda a sua força é a graça do Espírito Santo, que se dá pela fé em Cristo. Por conseguinte, a lei nova (o Evangelho) é principalmente a própria graça do Espírito Santo, que se dá aos fieis de Cristo” (TOMÁS DE AQUINO, S., Suma Teológica, I-II, q. 106, a. 1, solução).

Em outras palavras, o Evangelho não é uma mera ética, é a própria presença de Deus em nós, agindo pela sua graça. Portanto, trata-se de uma realidade sobrenatural, que não se confunde com as realidades naturais, embora não lhes seja contraposta.

Esta distinção de planos é aquilo que fazia São Tomás distinguir uma dupla ordem na Divina Providência: a Providência geral sobre o mundo e a Providência especial para os eleitos (cf. TOMÁS DE AQUINO, S., Questões disputadas sobre a verdade, q. 5, a. 7, resposta) e é o mesmo que fazia Santo Agostinho, em seu trecho célebre de “A Cidade de Deus”, distinguir entre a cidade de Deus e a cidade dos homens: “dois amores construíram duas cidades: a terrena, o amor próprio até o desprezo de Deus; e a celeste, o verdadeiro amor de Deus até o desprezo de si” (AGOSTINHO, S., A Cidade de Deus, XIV,28). Não se trata de estruturas justapostas ou contraditórias, mas de duas ordens diferentes na realidade, sendo que a sobrenatural transcende a natural, ordenando-a a uma perfeição a que esta não poderia chegar por si mesma.

A essência do Evangelho é, portanto, Deus agindo naquele que crê mediante a sua graça salvadora e santificadora, como efeito da graça de Cristo, obtida especialmente em seu sacrifício expiatório na Cruz. É esta realidade o centro da mensagem do Evangelho, aquilo que chamamos de querigma, e que o próprio Papa Francisco exortou a que seja explicitamente pregado (cf. FRANCISCO, S.S., Exortação apostólica Evangelii gaudium, n.160).

4. O “evangelho” mundano

Os teólogos modernos, porém, estavam excessivamente preocupados em evitar que a Igreja se fechasse num monólogo abstrato e se afastasse das realidades históricas. A preocupação não é, em si mesma, descabida, mas acabou dando espaço para uma confusão teológica entre os planos sobrenatural e natural.

Numa conferência de 1964, o teólogo holandês Edward Schillebeekx (“A Igreja e o mundo”, em SCHILLEBEECKX, E., O mundo e a Igreja, Paulinas, São Paulo: 1971) afirmou que “o mundo é um cristianismo implícito, é expressão própria, não sacral, mas santificada, da comunhão do homem com o Deus vivo” (p. 187). “Quando a Igreja fala do ‘mundo’, fala de uma expressão verdadeiramente cristã da vida teologal dos seus fieis e, ao mesmo tempo, da expressão terrena do cristianismo implícito dos que não recorrem à sua doutrina” (pp. 191-192). Ademais, ele diz que “acentuar a transcendência da graça com prejuízo de sua imanência constituirá sempre um desprezo à própria transcendência ou, pelo menos limitará muito unilateralmente esta imanência às formas eclesiais sagradas e institucionais da graça, pois a presença ativa (repleta de graça) do mistério na humanidade-que-faz-a-história não sacraliza a natureza e a história, nem lhes rouba o seu sentido profano, e sim as santifica, introduzindo-as na intimidade com Deus” (p. 198) e, por fim, “a Igreja ama o mundo em si mesmo e não porque possui ele capacidade receptiva de graça. Ama-o efetivamente, isto é, com um amor que cria valores, e por isso, deseja que o mundo produza aqueles grandes valores humanos de que necessita como do pão: a liberdade de consciência, o valor pessoal do matrimônio e da família, a cultura, um sistema econômico, social e político capaz de proporcionar uma vida humana cristãmente digna e, finalmente, uma comunidade mundial fundada na ordem e na paz” (p. 201).

O que Schillebeeckx propõe é exatamente uma teologia que assuma os valores do mundo como valores cristãos implícitos e, portanto, assuma as agendas do mundo como agendas próprias do cristianismo. A distinção de planos foi reduzida apenas a uma explicação retórica. O medo do monólogo levou ao monismo, a graça foi diluída na natureza.

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Gustavo Gutiérrez o diz explicitamente no final da segunda parte de “Teologia da Libertação” (9ª. edição, Loyola, São Paulo: 2000): “A consequência mais imediata desta perspectiva é que as fronteiras entre vida de fé e tarefa terrestre, Igreja e mundo, tornam-se mais fluidas. Como diz E. Schillebeeckx: ‘Não só as fronteiras entre Igreja e humanidade se apagam em direção à Igreja, mas ainda podemos afirmar que se apagam também em direção à humanidade e ao mundo’. Alguns até se perguntam se são duas coisas realmente distintas: ‘Será a Igreja realmente algo distinto do mundo?… A Igreja é do mundo: em certo sentido, a Igreja é o mundo: a Igreja não é um não-mundo’. Há, porém, outra consequência que nos importa. A afirmação da vocação única para a salvação, além de toda distinção, valoriza religiosamente, de forma inteiramente nova, o agir de homens e mulheres na história: cristãos e não cristãos. A construção de uma sociedade justa tem valor de aceitação do reino ou, em termos que nos são mais próximos: participar do processo de libertação já é, de certo modo, obra salvadora. Estamos, pois, diante da afirmação de um mundo cada vez mais autônomo, ‘não religioso’ ou, positivamente, um mundo maior. Mas também diante de uma vocação única à salvação que valoriza cristãmente – embora de modo diferente do passado – toda a história humana. Fustigada por este duplo movimento – não isento de interpretações abusivas e que nem sempre se expressa com suficiente rigor – a distinção de planos aparece como um esquema esgotado, sem resposta diante dos progressos da reflexão teológica. Assim, tanto no nível dos compromissos concretos dos cristãos no mundo de hoje como no da reflexão teológica contemporânea, a distinção de planos é percebida como insuficiente. Se em dado momento a mencionada teologia motivou e acompanhou a presença dos cristãos na construção do mundo, hoje aparece, em sua rigidez, superada e carente de dinamismo diante das novas questões que se estabelecem. O que há de válido nessas dimensões só poderá ser mantido numa radical mudança de perspectiva” (pp. 127-129).

Curiosamente, Johannes Baptist Metz chegou mesmo a afirmar, num congresso realizado em 1988 em Maryknol, Nova York, para comemorar os 60 anos de Gustavo Gutierrez, que a Teologia da libertação não é somente uma nova ética teológica (uma ética de opção pelos pobres), mas é uma nova Teologia por inteiro (cf. METZ, J. B., Theology in the Struggle for History and Society; in The Future of Liberation Theology, Essays in honor of Gustavo Gutierrez, edited by Marc Ellis and Otto Maduro, Orbis Books, Maryknoll, 1989, p. 165).

5. A adulteração de um novo “evangelho” seletivo

Em resumo, o Evangelho deixou de ser considerado em sua dimensão sobrenatural e transcendente, recortando-se-lhe apenas aquelas dimensões que estão em consonância com o mundo secularista, cujos valores humanistas foram seletivamente colhidos do próprio cristianismo.

É de recortes como estes que nasce a apreciação de uma adulteração tão flagrante da imagem de Jesus Cristo, esvaziada de sua divindade, de sua santidade, de sua sobrenaturalidade. O “evangelho da Sapucaí” tem um nascedouro: ele é fruto de uma teologia de baixo, que se rendeu completamente ao mundo e que se compreende como sua escrava.

Este “evangelho” não converte ninguém, é ele que se converte ao mundanismo. Nele, os cristãos estão sempre errados e o mundo está sempre certo. Aí, os pobres são apenas usados como ferramenta retórica, enquanto se bajula o establishment.

“Ó gálatas insensatos, quem vos enfeitiçou? E Jesus Cristo crucificado não tinha sido descrito diante de vossos olhos?… Sois assim tão insensatos? A ponto de, depois de terdes começado pelo Espírito, quererdes terminar na carne?” (Gl 3,1-3), a ponto de quererdes terminar no carnaval?…