QUARESMA 2012

À procura de Deus

Reflexões de Quaresma, por Dom Alberto Taveira Corrêa, Arcebispo Metropolitano de Belém

Por Dom Alberto Taveira Corrêa

BRASILIA, terça-feira, 20 de março de 2012 (ZENIT.org) – Os Evangelhos mostram Jerusalém como a meta do caminho de Jesus. Lá ele se entregou até o fim, morreu e ressuscitou. E justamente no centro do culto e da doutrina, onde se achava o templo, não foi acolhido. Muitos se aproximam do Senhor, mas aparecem logo os contrastes. Há grupos que fazem perguntas a Jesus, mais interessados em preparar-lhe armadilhas. “Com que autoridade fazes isso?” (Mc 11,29), perguntam-lhe instigados pela ação de Jesus, que purifica o Templo. Provocam-no a respeito do tributo a César (Mc 12,13-17), querem saber do mandamento mais importante, ou os saduceus questionam a ressurreição dos mortos (Mc 12, 18-27).

Da Jerusalém do mistério pascal de Cristo brotou o anúncio de seu nome e da salvação que ele oferece, percorrendo as estradas ou atalhos da história. Naquela cidade se revelaram os recônditos do coração humano que busca Deus. Sabemos que muitos foram de longe para conhecer Jesus. Lá no início, foram homens chegados do oriente, viajando atrás de uma estrela. No decorrer da vida pública de Jesus, eram cegos, surdos, mudos, coxos, aleijados, prostitutas, publicanos e outras classes de pecadores públicos. Acorriam a ele escribas e fariseus, pobres e ricos, maus e bons. Afinal, o convite era dirigido a todos! As decisões das pessoas foram tomadas pouco a pouco. E nos séculos e milênios que se seguiram, muitos o procuram. E nós fazemos parte da incontável multidão dos que são sedentos de Deus!

Em Jerusalém, quando estava para se concluir a atividade de Jesus, abre-se uma janela para a conversão dos pagãos! São homens que acorreram à cidade para a festa. Chega a hora da glorificação de Jesus! Pela paixão e morte ele chegará à glória, como ilustra a comparação do grão de trigo, sepultado na terra para dar fruto. A mesma sorte caberá aos seguidores de Jesus, que hão de acompanhá-lo onde quer que ele vá: à cruz e à glória. Revistamo-nos da pele daqueles estrangeiros que se aproximaram dos apóstolos, desejando ver Jesus (Jo 12,20-33), para descobrir dentro de nós mesmos e em tantas pessoas as perguntas autênticas.

Há coleções de livros que retratam vidas célebres. Posto ao lado de personagens históricos, pode até parecer que Jesus Cristo seja apenas um mestre a mais, dentre tantos outros. Sua sabedoria viria a ser comparada com outras figuras que marcaram época. Os cristãos sabem que ele é infinitamente maior do que qualquer sábio de qualquer tempo. O que atraiu os estrangeiros que foram aos apóstolos querendo “ver Jesus” é sua originalidade. Ver, no Evangelho de São João, é aproximar-se para crer! Crer é mais do que curiosidade, mais do que a emoção, muito mais do que um vago sentimento religioso.

A Jesus se vai não para negociar milagres ou favores. Diante dele caem todas as provocações e eventuais exigências ou cobranças. Desconcertadas ficaram todas as pessoas que acorriam para provocá-lo. Intrigados ficaram todos os Pilatos ou os Herodes da história. Nos Sinédrios e Tribunais de todos os tempos, que se reuniram para analisar sua doutrina ou julgá-lo, mesmo quando o condenaram ou aos seus discípulos, deixou-lhes dentro do coração o terrível incômodo de não terem aderido à verdade que se apresentava (cf. Mt 27,11-26; Jo 18,28 –19,16). Ele lhes escapa sempre, continuando o caminho, como fez em Nazaré (Lc 4,30).

“Jesus Cristo é a boa nova da salvação comunicada aos homens de ontem, de hoje e de sempre; mas, ao mesmo tempo, ele é também o primeiro e supremo evangelizador. A Igreja deve colocar o centro da sua atenção pastoral e da sua ação evangelizadora em Cristo crucificado e ressuscitado. Tudo o que se projeta na Igreja deve partir de Cristo e do seu Evangelho. Por isso, ela deve falar cada vez mais de Jesus Cristo, rosto humano de Deus e rosto divino do homem. É este anúncio que verdadeiramente mexe com os homens, que desperta e transforma os ânimos, ou seja, que converte. É preciso anunciar Cristo com alegria e fortaleza, mas, sobretudo com o testemunho da própria vida” (Ecclesia in America 67).

A todos os interlocutores, sinceros ou não, Jesus se apresenta como aquele que é Caminho, Verdade e Vida. Será sempre nova e provocante a caridade que o levou a entregar-se à morte no seu amor pelo mundo! Não dá para ficar indiferente diante de sua pessoa. Quero homenagear as pessoas inquietas, que desejam saber mais, aquelas que têm no coração muitas perguntas que perturbam e para as quais só Deus é a resposta. Que ele mesmo abra as portas da fé para todos os homens e mulheres que acorrem à Igreja. Peço ao Senhor, às portas da Semana Santa e da Páscoa, que nós, cristãos, digamos com a vida o que celebraremos dentro da Igreja. Que ninguém passe em vão ao nosso lado, mas saibamos levar, como Filipe e André, até Jesus Cristo, a humanidade suplicante de nosso tempo, que quer vê-lo e segui-lo.

*Dom Alberto Taveira é Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará e acumula também essas outras funções na Igreja: Bispo Assistente Nacional da Renovação Carismática Católica, Por nomeação da Santa Sé é Assistente Internacional das “Comunidades Novas nascidas da Renovação Carismática Católica, membro do Conselho Administrativo da Fundação “Populorum Progressio”, Presidente da Fundação Nazaré de Comunicação, preside anualmente o “Círio de Nazaré” e é membro da Comissão Episcopal para os Textos Litúrgicos.

Bioética e direitos de personalidade do nascituro

Silmara J. A. Chinelato e Almeida

Resumo

Nascituro é a pessoa por nascer, já concebida no ventre materno. No Brasil tem-se três correntes fundamentais acerca de sua natureza jurídica: a natalista, em que se afirma que a personalidade civil começa do nascimento com vida, conforme o artigo 4° do Código Civil, mas não explica as expectativas de direitos e baseia-se no Direito Romano, que não considerava o nascituro como pessoa, a da personalidade condicional que reconhece a personalidade desde a concepção, mas condiciona ao nascimento com vida, deixando à margem os Direitos da Personalidade, tal como o direito à vida, que não depende do nascimento com vida e a concepcionista que sustenta que a personalidade começa da concepção. A personalidade não se confunde com a capacidade e aquela não é condicional, apenas certos direitos patrimoniais dependem do nascimento com vida. Os Direitos da Personalidade são as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim seus prolongamentos e projeções. O Código Civil não tutelou sob tal denominação, mas reconhece-os em vários dispositivos. R. Limongi França classifica de forma tripartite os Direitos da Personalidade: Direito à Integridade Física, Direito à Integridade Moral é Direito à Integridade Intelectual. Classificamos em quatro categorias, colocando o Direito à Vida como categoria autônoma, não integrante do Direito à Integridade Física. O Direito à vida é o primordial e condicionante já que sem este os outros inexistem. O Direito à Integridade Física não se confunde com a da mãe e as diversas técnicas médicas intra-uterinas demonstram esta preocupação com o nascituro em qualquer fase de desenvolvimento, aponta-se aqui a indenização de danos pré-natais previsto no Direito Estrangeiro. O Direito à imagem diz respeito à reprodução física da pessoa, por qualquer meio de captação, incluindo a ultra-sonografia. O Direito à honra existe desde o momento da concepção. Assim, enfatiza-se que os Direitos da Personalidade iniciam-se desde a concepção e ultrapassam a morte. O Direito de Personalidade do Embrião Pré-Implantatório por constituir espécie do direito à identidade e opõe-se ao anonimato exigido dos doadores de gametas, sendo que a destruição da identidade dos pais genéticos implica em responsabilidade civil, por dano moral, pela violação de direito da personalidade.

 

Scientia Iuris

ISSN (eletrônico) 2178-8189

ISSN (impresso) 1415-6490

E-mail: [email protected]

 

O aborto e o infanticídio

Ladeira escorregadia

John Flynn, LC
ROMA, quarta-feira, 14 de março de 2012 (ZENIT.org) – “Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty, em tom de desdém, “ela significa o que eu quero dizer. Nem mais nem menos”.

Este trecho de Alice no País do Espelho, de Lewis Carroll, foi retirado de uma narrativa ficcional, mas é muito adequado para descrever o artigo Aborto após o nascimento: por que a criança deveria viver?, publicado em 23 de fevereiro no Journal of Medical Ethics.

Os autores, Alberto Giubilini e Francesca Minerva, acadêmicos em Melbourne, Austrália, argumentam que “o que chamamos de aborto após o nascimento (o assassinato de um recém-nascido) deveria ser permitido em todos os casos em que o aborto também o é, inclusive naqueles em que a criança não é deficiente”.

O aborto é permitido quando o feto sofre de algum tipo de malformação ou doença, ou até por motivos econômicos, sociais e psicológicos, disseram eles. E na Holanda, de acordo com o Protocolo de Groningen de 2002, as crianças que tiverem um “prognóstico sem esperança” também podem ser mortas.

Em vez do termo infanticídio, universalmente aceito para descrever o procedimento, eles adotaram a expressão “aborto após o nascimento”.

“O status moral de uma criança é equivalente ao de um feto, no sentido de que que a ambos faltam as propriedades que justificam o reconhecimento do direito de um indivíduo à vida”, proclamaram os autores.

Eles não colocaram qualquer limite sobre quanto tempo após o nascimento o chamado “aborto” deveria ser permitido. Apenas notaram que, normalmente, as deficiências são descobertas em poucos dias.

Quando a justificativa é por motivos não-médicos, os autores também omitiram qualquer período de tempo, dizendo que dependeria apenas do desenvolvimento neurológico da criança recém-nascida.

Discussão razoável

Como era de se esperar, o artigo de Giubilini e Minerva despertou muitas críticas. Em resposta, o editor do Journal of Medical Ethics, Julian Savulescu, escreveu no blog da revista em 20 de fevereiro que o perturbador não era a proposta dos autores de usar a expressão “aborto após o nascimento”, mas sim as reações hostis ao que ele chamou de “qualquer tipo de discussão razoável”.

Em uma carta aberta, publicada em 2 de março no site da revista, os autores do artigo se declararam surpresos com a reação hostil, dizendo que “tratava-se de um mero exercício de lógica”.

A tática dos autores de descrever o artigo como um exercício intelectual tinha sido antecipada por Bill Muehlenberg em artigo publicado no dia anterior no site australiano Line Opinion.

“Nas décadas que precederam o Holocausto, muitas posições acadêmicas e declarações abriram caminho para o que Hitler e os nazistas fizeram”, afirmou ele.

“Usar a sala de aula e as revistas acadêmicas para defender com frieza e com calma a matança de crianças não é sinal de profissionalismo nem de progresso. É um sinal de barbárie e de retrocesso”.

As ideias têm consequências, disse por sua vez Stammers Trevor, em artigo publicado no dia 5 de março no site Mercator Net: “Simplificando, toda revolução social começa com uma ideia. As ideias de Giubilini e Minerva não são uma exceção e têm relevância além do mundo acadêmico”.

“Como pai de uma criança com síndrome de Down, os argumentos deles me dão nojo”, disse David Warren, escrevendo em 2 de março no jornal canadense The Ottawa Citizen. “É verdade”, admite Warren, “que outros, como o bioeticista Peter Singer, já apoiaram o infanticídio. Além disso, Singer defende também a aceitação da bestialidade”.

Matar crianças e fazer sexo com animais é normal na ética de camarilha, diz o título de um artigo de Rod Liddle no Sunday Times deste fim de semana. Liddle ridiculariza Peter Singer, dizendo que ele não carecia apenas de bom senso, mas de toda lógica.

Gerald Warner, no Scotland on Sunday, observou que “o lugar mais perigoso do mundo para uma criança na Escócia é o útero da mãe. Em 2010, a mortalidade infantil levou 218 crianças escocesas à morte. O aborto, 12.826”.

Niilismo ético

Embora a promoção do “aborto após o nascimento” seja um bom exemplo do que chamou de niilismo ético, Warner nota que os autores fizeram um favor à causa pró-vida. “Eles deixaram de lado os eufemismos sutis, as mentiras e os enganos anti-científicos dos lobistas pró-aborto, e chamaram o pão de pão e o queijo de queijo”, disse ele.

No australiano Daily Telegraph, Andrew Bolt escreveu: “Não há um limite claro depois que você apaga a linha do absoluto que diz: não matar o bebê no útero da mãe”. A ladeira é escorregadia, prossegue Bolt, e este caso demonstra o quanto.

Em 7 de março, Barney Zwartz, editor de religião no Age of Melbourne, também da Austrália, escreveu que um passo fatal foi dado no debate sobre a vida quando o conceito de “qualidade de vida” substituiu o do “valor da vida” nessas discussões.

O pai de uma criança com síndrome de Down afirmou: “Afirmar que você está seguindo uma lógica não é, de modo algum, uma justificativa. A lógica é uma ferramenta, cuja utilidade depende das premissas com as quais ela funciona. Não é um bem em si mesma”.

Estes princípios morais firmes são ainda acusados ​​de “excessiva rigidez”. O episódio descrito aqui demonstra o que a “flexibilidade” pode se tornar quando o tema em questão são os princípios morais fundamentais.

Acordar da anestesia espiritual

Reflexão de Frei Patrício Sciadini sobre a mensagem do Papa para esta Quaresma
ROMA, segunda-feira, 12 de março de 2012 (ZENIT.org) – Apresentamos a reflexão de Frei Patricio Scaidini enviada à ZENIT para “nos acordar do nosso sono letárgico espiritual”, conforme a mensagem do Papa para esta Quaresma.

Não tenho receio em definir a mensagem para esta quaresma 2012 do Santo Padre o Papa Bento XVI, uma das mais belas de todas as quaresmas, desde que o Papa começou a enviar uma mensagem especial. Simples na linguagem, direta, que nos obriga não a uma leitura rápida, mas sim a uma leitura demorada, meditativa, contemplativa, a voltar mais vezes ao texto para perceber como atrás de cada palavra o Papa quer nos acordar do nosso sono letárgico espiritual, que ele chama “anestesia espiritual”. O coração da mensagem é tirado da Carta aos Hebreus 10,24: “Olhemos uns pelos outros para estimularmos a caridade e as boas obras.”

Devo reconhecer que eu nem sabia deste texto e nem conhecia. A palavra de Deus é de uma riqueza que não se esgota numa só leitura. Cada um a lê segundo o momento particular que vive, pessoal ou comunitariamente, ou eclesial ou mundialmente. O olhar do Papa que conhece a realidade do mundo e o momento de “crise” que passa, vê que o ser humano está como “anestesiado” diante do outro. O outro não interessa, e um número que nos passa perto, uma fantasma e não uma pessoa amada, parte de nós mesmos. Atenção ao outro exige que se deseje para o outro todo o bem.

A pessoa não pode ser feliz a pedaços, como pedras de mosaico, separadas umas das outras, mas no seu conjunto: a felicidade, o bem e a globalidade da pessoa que se realiza no seu todo. Não há felicidade quando falta o pão na mesa, o trabalho, os meios para curar-se das doenças, o alimento cultural que gera desenvolvimento. É preciso uma revolução a partir de dentro de nós mesmos, que nos coloque diante do outro como nosso irmão e deseja para o outro o que nós desejamos para nós.

A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos sofrimentos alheios. (n. 1)

Na verdade os sacerdotes levitas não maltratam quem tinha caído nas mãos dos ladrões e estava meio morto à beira da estrada, nem o ofenderam, nem tampouco cuspiram nele. Mas passaram e viraram o olhar ao outro lado. É o pecado da indiferença que está se tornando a cultura dominante do mundo. Não dar importância ao outro. A quaresma é o momento em que devemos nos acordar da anestesia, sentir dor não só pelas nossas feridas, mas também as dos outros. A vida cristã não é uma filosofia e um discutir sobre os problemas, mas sim ver, julgar e agir… Sem ação direta não haverá mudanças de estruturas e de estilo de vida, nem compromisso social que leve o ser humano a uma vida mais digna.

* Frei Patrício Sciadini, ocd, religioso, Carmelita Descalço, escreveu mais de 60 livros, publicados no Brasil e no exterior, atualmente é o delegado geral no Egito.

SANTO ATANÁSIO E A FÉ NA DIVINDADE DE CRISTO

Primeira pregação da Quaresma do Padre Raniero Cantalamessa

CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 9 de março de 2012 (ZENIT.org) – Publicamos o texto da primeira pregação da Quaresma do padre Raniero Cantalamessa, O.F.M. Cap., pregador da Casa Pontifícia, pronunciada hoje de manhã na Capela “Redemptoris Mater”, no Vaticano, na presença do Papa Bento XVI.

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Em preparação para o ano da fé proclamado pelo Santo Padre Bento XVI (12 de outubro de 2012 -24 de novembro de 2013), as quatro pregações da Quaresma têm a intenção de retomar o impulso e o frescor da nossa fé, através de um contato renovado com os “gigantes da fé “do passado. Daí o título, retirado da carta aos Hebreus, e que foi dado para todo o ciclo: “Lembrai-vos dos vossos dirigentes, que vos anunciaram a palavra de Deus. Imitai-lhes a fé” (Hb 13,7).

Iremos cada vez para a escola de um dos quatro grandes doutores da Igreja oriental – Atanásio, Basílio, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa – para ver o que cada um deles nos diz hoje, sobre o dogma do qual foram o defensor, ou seja, respectivamente, a divindade de Cristo, o Espírito Santo, a Trindade, o conhecimento de Deus. Em outro momento, se Deus quiser, vamos fazer a mesma coisa com os grandes doutores da Igreja do Ocidente: Agostinho, Ambrósio, e Leão Magno.

O que gostaríamos de aprender com os Padres não é tanto como proclamar a fé no mundo, ou seja, a evangelização, e nem sequer como defender a fé contra os erros, ou seja, a ortodoxia; realmente o que queremos é o aprofundamento da própria fé, redescobrir, por trás deles, a riqueza, a beleza e a felicidade do crer. Passar, como diz Paulo, “de fé em fé” (Rm 1,17), de uma fé que se acredita à uma fé vivida. Será justamente um grande crescimento “voluminoso” de fé dentro da Igreja que constituirá depois a maior força no anúncio dessa ao mundo e a melhor defesa da sua ortodoxia.

O Padre de Lubac afirmou que nunca houve na história uma renovação da Igreja que não tenha sido também um retorno aos Padres. O Concílio Vaticano II não é nenhuma exceção, do qual estamos nos preparando para comemorar o 50º aniversário. Ele está cheio de citações dos Padres; muitos dos seus protagonistas foram Patrólogos. Depois da Escritura, os Padres são a segunda “camada” de terreno sobre a qual assenta e da qual extrai sua seiva a teologia, a liturgia, a exegese bíblica e toda a espiritualidade da Igreja.

Em certas catedrais góticas da Idade Média vemos algumas estátuas curiosas: personagens com tamanhos imponentes que sustentam, sentados sobre os ombros, homens muito pequenininhos. É uma representação em pedra de uma convicção que os teólogos do tempo formulavam com estas palavras: “Nós somos como anões sentados nos ombros de gigantes, para que possamos ver coisas e mais longe do que eles, não pela agudeza do nosso olhar ou por causa da altura do corpo, mas para que sejamos levados mais alto e elevados à altura gigantesca”( Bernardo di Chartres, in Giovanni di Salisbury, Metalogicon, III, 4 – Corpus Chr. Cont. Med., 98, p.116). Os gigantes eram, naturalmente, os Padres da Igreja. E isso nos acontece também hoje.

1. Atanásio, o defensor da divindade de Cristo

Começamos nossa análise com Santo Atanásio, bispo de Alexandria, nascido em 295 d.C. e morto em 373 d.C.. Poucos Padres deixaram uma marca tão profunda na história da Igreja. Ele é lembrado por muitas coisas: pela influência que teve na difusão do monaquismo, graças à sua “Vida de Antônio”, por ter sido o primeiro a reivindicar a liberdade da Igreja também em um estado cristão” (Atanasio, Historia Arianorum, 52,3: “O que que o Imperador tem a ver com a Igreja?”), pela sua amizade com os bispos ocidentais, favorecida pelos contatos feitos durante o exílio que marca um fortalecimento dos laços entre Alexandria e Roma …

Mas não é sobre isso que queremos ocupar-nos. Kierkegaard, no seu Diário, tem um pensamento curioso: “A terminologia dogmática da Igreja primitiva é como um castelo assombrado, onde repousam num sono profundo os príncipes e princesas mais graciosos. Basta somente acordá-los, para que pulem de pé com toda a sua glória” [S. Kierkegaard, Diario, II A 110 (Trad.ital. di C. Fabro, Brescia 1962, nr. 196; Tradução nossa para o português)]. O dogma que Atanásio nos ajuda a “acordar” e fazer brilhar em toda a sua glória é o da divindade de Cristo; por essa sofreu sete vezes o exílio.

O bispo de Alexandria está bem convencido de não ter sido o descobridor dessa verdade. Todo o seu trabalho consistirá, pelo contrário, no mostrar que esta sempre foi a fé da Igreja; que nova não é a verdade, mas a heresia contrária. O seu mérito, neste campo, foi aquele de remover aqueles obstáculos que tinham impedido até agora um reconhecimento pleno e sem reticências da divindade de Cristo no contexto cultural grego.

Um desses obstáculos, talvez o principal, era o hábito grego de definir a essência divina com o termo agennetos, não-gerado. Como proclamar que o Verbo é verdadeiro Deus, já que esse é Filho, ou seja gerado pelo Pai? Era fácil para Ario estabelecer a equivalência: gerado = feito, ou seja ir de genetos para genetos, e concluir com a célebre frase que fez explodir o caso: ” Que houve um tempo em que o Filho (ainda) não existia” (Em grego, ainda mais sucintamente: en ota ouk en: houve quando não havia). Isto era o mesmo que fazer de Cristo uma criatura, embora não “como as outras criaturas”. Atanásio defendeu ao máximo o genitus non factus de Nicéia, “gerado, não criado”. Ele resolve a controvérsia com a simples observação: “O termo agenetos foi inventado pelos gregos, que não conheciam o Filho”(Atanasio, De decretis Nicenae synodi, 31).

Outro obstáculo cultural para o pleno reconhecimento da divindade de Cristo, menos sentido no momento, mas não menos ativo, era a doutrina de uma divindade intermediária, o deuteros theos, ligado à criação do mundo material. A partir de Platão, esse tornou-se um dado comum a muitos sistemas religiosos e filosóficos da antiguidade. A tentação de assimilar o Filho, “por meio do qual foram criadas todas as coisas”, a esta entidade intermediária que tinha permanecido serpenteando a especulação cristã, embora não na vida da Igreja. O resultado era um esquema tripartido do ser: no topo de tudo, o Pai não-gerado – depois dele, o Filho (e mais tarde também o Espírito Santo) e por fim as criaturas.

A definição do homoousios, do “genitus non factus”, remove para sempre o principal obstáculo do helenismo para o reconhecimento da plena divindade de Cristo e obra a catarse cristã do universo metafísico dos gregos. Com esta definição, uma única linha de demarcação é desenhada na vertical do ser e esta linha não divide o Filho do Pai, mas o Filho das criaturas. Querendo colocar numa frase o significado perene da definição de Nicéia, podemos formulá-la assim: em todas as épocas e culturas, Cristo deve ser proclamado “Deus”, não em qualquer sentido derivado ou secundário, mas no sentido mais forte que a palavra “Deus” tem em tal cultura.

Atanásio fez da manutenção dessa conquista o propósito da sua vida. Quando todos, imperadores, bispos e teólogos, oscilavam entre uma rejeição e uma tentativa de acordo, ele permaneceu inflexível. Houve momentos em que a futura fé comum da Igreja vivia no coração de um só homem: o seu. Da atitude para com ele se decidia de que parte cada um estava.

2. O argumento soteriológico

Porém mais importante que insistir na fé de Atanásio na plena divindade de Cristo, que é bem conhecido e pacífico, é saber o que o motiva no campo de batalha, de onde lhe vem uma certeza tão absoluta. Não da especulação, mas da vida; mais especificamente, da reflexão sobre a experiência que a Igreja faz da salvaçãoem Cristo Jesus.

Atanásio desloca o interesse da teologia do cosmos ao homem, da cosmologia à soteriologia. Referindo-se à tradição eclesiástica antes de Orígenes, especialmente em Irineu, Atanásio valoriza os resultados elaborados na longa batalha contra o gnosticismo, que o tinha levado a concentrar-se na história da salvação e da redenção humana. Cristo não se coloca mais, como na época dos apologistas, entre Deus e o Cosmos, mas sim entre Deus e o homem. Que Cristo seja Mediador não significa que ele esteja entre Deus e o homem (mediação ontológica, muitas vezes entendida em sentido subordinacionista), mas que une Deus e o homem. Nele, Deus se faz homem e o homem se faz Deus, ou seja é divinizado (Atanasio, De incarnatione 54, cfr. Ireneu, Adv. haer. V, praef).

Sobre este pano de fundo, coloca-se a aplicação que Atanásio faz do argumento soteriológico em função da demonstração da divindade de Cristo. O argumento soteriológico não nasce com a controvérsia ariana; está presente em todas as grandes controvérsias cristológicas antigas, da antignóstica àquela antimonotelita. Na sua formulação clássica se lê: “Quod non est assumptum non est sanatum“, “O que não é assumido não é salvo” (Gregório Nazianzeno, Carta Cledonio, PG 37, 181) Isso se adapta dependendo dos casos, a fim de refutar o erro do momento, que pode ser a negação da carne humana de Cristo (gnosticismo), ou da sua alma humana (apolinarismo), ou da sua vontade livre (monotelismo).

No uso que faz Atanásio, pode-se formular da seguinte forma: “O que não é assumido por Deus não é salvo”, onde a força está toda naquele breve acréscimo “por Deus”. A salvação exige que o homem não seja assumido por qualquer intermediário, mas pelo próprio Deus: “Se o Filho é uma criatura – Atanásio escreve – o homem permaneceria mortal, não ficando unido a Deus”, e ainda: “O homem não seria divinizado, se o Verbo que se fez carne não fosse da mesma natureza do Pai”( Atanasio, Contra Arianos II 69 e I 70). Atanásio formulou muitos séculos antes de Heidegger, e tomando-a com uma seriedade muito maior, a idéia de que “só um Deus pode nos salvar,” nur noch ein gott kann uns retten (Antwort. Martin Heidegger im Gespräch, Pfullingen 1988).

As implicações soteriológicas que Atanásio tira do homoousios de Nicéia são numerosas e profundíssimas. Definir o Filho “consubstancial” ao Pai significava colocá-lo em um nível tal, pelo qual nada absolutamente podia permanecer fora do seu raio de ação. Significava também enraizar o significado de Cristo no mesmo fundamento no qual estava enraizado o ser de Cristo, ou seja no Pai. Jesus Cristo, quer dizer, não é, na história e no universo, uma segunda presença aditiva com relação àquela de Deus; pelo contrário, ele é a presença e a importância mesma do Pai. Escreve Atanásio:

“Bom como é, o Pai, com o seu Verbo que é também Deus, guia e sustenta o mundo inteiro, porque a criação, iluminada pela sua direção, pela sua providência e pela sua ordem, possa persistir no ser… O onipotente e santíssimo Verbo do Pai, penetrando todas as coisas e chegando em toda parte com a sua força, dá luz a toda realidade e tudo contém e abraça em si mesmo. Não há nenhum ser que caia fora fora do seu domínio. Todas as coisas recebem totalmente dele a vida e dele são mantidas nela: as criaturas individuais em sua individualidade e o universo criado em sua totalidade” (Atanasio, Contra gentes 41-42).

Deve-se, contudo, fazer uma clarificação importante. A divindade de Cristo não é um “postulado” prático, como é, para Kant, a própria existência de Deus (I.Kant, Crítica da razão prática, cap. III, VI). Não é um postulado, mas a explicação de um “dado”. Seria um postulado, e, portanto, uma dedução humana teológica, se se partisse de uma certa ideia de salvação e se deduzisse dela a divindade de Cristo como a única capaz de obrar tal salvação; é em vez a explicação de um dado se se começa, como faz Atanásio, a partir de uma experiência de salvação e se demonstra como essa não poderia existir se Cristo não fosse Deus. Não é sobre a salvação que se fundamenta a divindade de Cristo, mas é sobre a divindade de Cristo que se fundamenta a salvação.

3. Corde creditur!

Mas é hora de voltar-nos a nós mesmos para ver o que podemos aprender hoje da épica batalha suportada por Atanásio. A divindade de Cristo é hoje o verdadeiro “articulus stantis et cadentis ecclesiae”, a verdade com a qual a Igreja está de pé ou cai. Se em outros tempos, quando a divindade de Cristo era pacificamente aceita por todos os cristãos, se podia pensar que tal “artigo” fosse a “justificação gratuita por fé”, agora não é mais assim. Podemos dizer que o problema vital para o homem de hoje é estabelecer a forma como o pecador é justificado, quando nem mesmo se acredita mais numa necessidade de justificação, ou se está convencido de encontrá-la em si mesmo? “Eu mesmo hoje me acuso – Sartre faz gritar do palco uma das suas personagens – e só eu posso também absolver-me, eu o homem. Se Deus existe, o homem não é nada” (J.-P. Sartre, Il diavolo e il buon Dio, X, 4, Gallimard, Parigi 1951, p. 267 s.).

A divindade de Cristo é a pedra angular que suporta os dois principais mistérios da fé cristã; a Trindade e a Encarnação. São como duas portas que se abrem e se fecham juntas. Descartada aquela pedra, todo o edifício da fé cristã desmorona sobre si mesmo: se o Filho não é Deus, de quem está formada a Trindade? Tinha-o denunciado claramente Santo Atanásio, escrevendo contra os arianos:

“Se o Verbo não existe junto com o Pai desde toda a eternidade, então não existe uma Trindade eterna, mas primeiro houve a unidade e depois, com o passar do tempo, por acréscimo, começou a ser a Trindade “(Atanasio, Contra Arianos I, 17-18, PG 26, 48).

(Uma idéia – esta da Trindade que se forma, “por acréscimo” – que voltou a ser proposta, em anos não muito distantes, por algum teólogo que aplicou à Trindade o esquema dialético do devir de Hegel!) Bem antes de Atanásio, Sao João tinha estabelecido este vínculo entre os dois mistérios: “Todo aquele que nega o Filho, também não possui o Pai. O que confessa o filho também possui o Pai (I Jo 2,23). As duas coisas permanecem ou caem juntas, mas se caem juntas então devemos infelizmente dizer com Paulo que nós cristãos “somos os mais dignos de compaixão de todos os homens” (1 Cor 15,19).

Nós devemos deixar-nos investir plenamente daquela pergunta tão respeitosa, mas tão direta de Jesus: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”, E daquela ainda mais pessoal: “Acreditas?” Acreditas realmente? Acreditas com todo o coração? São Paulo diz que “quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,10). No passado, a profissão da fé verdadeira, ou seja, o segundo momento deste processo tem tido às vezes tanta importância que deixou na sombra aquele primeiro momento que é o mais importante e que se desenvolve nas profundidades recônditas do coração. “É da raiz do coração que se eleva a fé”, exclama Santo Agostinho (Agostinho, Comentário ao Evangelho de João, 26,2 ;PL 35,1607)

Será talvez necessário destruir em nós, que cremos, e em nós homens de Igreja, a falsa persuasão de já crêr, de estar em dia no que respeita à fé. É necessário provocar a dúvida –óbviamente não de Jesus, mas de nós – para então podermos começar a busca de uma fé mais autêntica. Talvez que não seja um bem, por um pouco de tempo, não querer demonstrar nada a ninguém, mas interiorizar a fé, redescobrir as suas raízes no coração! Jesus perguntou a Pedro três vezes: “Me amas?”. Sabia que na primeira e na segunda vez, a resposta tinha saído muito rapida, para ser aquela verdadeira. Finalmente, na terceira vez, Pedro compreendeu. Também a questão da fé deve ser colocada assim para nós; por três vezes, insistentemente, até que nós não nos demos conta e entremos na verdade: “Crês? Tu crês? Crês realmente?”. Talvez no final responderemos: “Não, Senhor, eu realmente não creio com todo o coração e com toda a alma. Aumenta a minha fé!”.

Atanásio nos lembra, entretanto, uma outra importante verdade: que a fé na divindade de Cristo não é possível, se não se faz também a experiência da salvação obrada por Cristo. Sem esta, a divindade de Cristo se torna facilmente uma idéia, uma tese, e sabemos que à uma idéia é sempre possível opor outra idéia, e à uma tese, outra tese. Só à uma vida – diziam os Padres do deserto – não há nada que se possa opor.

A experiência da salvação é feita através da leitura da palavra de Deus (e tomando-a por aquilo que é, palavra de Deus!), administrando e recebendo os sacramentos, especialmente a Eucaristia, lugar privilegiado da presença do Ressuscitado, exercitando os carismas, mantendo um contato com a vida da comunidade dos que creem, pregando Evagrio, no IV século, formulou esta célebre frase: “Se é teólogo, rezarás realmente e se rezas realmente será teólogo”( Evagrio, De oratione61 ;PG 79, 1165).

Atanásio impediu que a investigação teológica permanecesse prisioneira da especulação filosófica das várias “escolas” e se tornasse ao invés disso aprofundamento do dado revelado na linha da Tradição. Um eminente historiador protestante reconheceu em Atanásio um mérito particular neste campo: “Graças à ele – escreveu – a fé em Cristo permaneceu rigorosa fé em Deus e, de acordo com sua natureza, totalmente distinta de todas as outras formas – pagãs, filosóficas, idealistas – de fé… Com ele, a Igreja tornou-se novamente instituição de salvação, ou seja, no sentido estrito do termo, ‘Igreja’, cujo conteúdo próprio e determinante foi constituído pela pregação de Cristo” (H. von Campenhausen, I Padri greci, Brescia 1967, pp. 103-104).

Tudo isso nos desafia hoje de maneira especial, depois que a teologia foi definida como uma “ciência” e é professada em círculos acadêmicos, muito mais descomprometida da vida da comunidade dos que creem do que era na época de Atanásio, a escola teológica, chamada Didaskaleion, florescida em Alexandria por obra de Clemente e de Orígenes. A ciência exige do pesquisador que “domine” a sua matéria e que seja “neutro” diante do objeto da própria ciência; mas como “dominar” aquele que pouco antes tens adorado como o teu Deus? Como manter-se neutro quanto ao objeto quando esse objeto é Cristo? Foi um dos motivos que me levaram, em algum momento da minha vida, a abandonar o ensino acadêmico para dedicar-me a tempo integral ao ministério da palavra. Lembro-me do pensamento que surgia em mim, depois de participar de congressos ou debates bíblicos e teológicos, especialmente no exterior: “Já que o mundo universitário voltou as costas para Jesus Cristo eu voltarei as costas para o mundo universitário”.

A solução para este problema não é abolir o estudo acadêmico da teologia. A situação italiana nos faz ver os efeitos negativos produzidos pela ausência de faculdades teológicas nas universidades estaduais. A cultura católica e religiosa no geral foi empurrada à um gheto; nas livrarias seculares não se encontra nenhum livro religioso, só se for de algum tema esotério ou de moda. O diálogo entre teologia e conhecimento humano, científico e filosófico, se realiza “à distância”, e não é a mesma coisa. Falando em ambientes universitários, eu digo muitas vezes para não seguir o meu exemplo (que continua a ser uma escolha pessoal), mas de valorizar ao máximo o privilégio de que gozam, buscando se for o caso tentar acoplar ao estudo e ao ensino também algumas atividades pastorais compatíveis com ele.

Se não se pode e não se deve tirar a teologia dos ambientes acadêmicos, há porém uma coisa que os teólogos acadêmicos podem fazer e é ser muito humilde para reconhecer os seus limites. A sua não é a única, nem a mais alta expressão da fé. O Padre Henri de Lubac escreveu: “O ministério da pregação não é a vulgarização de um ensinamento doutrinário em forma mais abstrata, que seria anterior e superior a ele. É, pelo contrário, o mesmo ensinamento doutrinal, na sua forma mais alta. Isto era verdade da primeira pregação cristã, aquela dos apóstolos, e é também verdadeira da pregação daqueles que lhes sucedem na Igreja: os Padres, os Doutores e os nossos Pastores no tempo presente”( H. de Lubac, Exégèse médièvale, I, 2, Parigi 1959, p. 670.). H. U. von Balthasar, por sua vez, fala da “missão da pregação na Igreja, à qual está sujeita a mesma missão teológica” (H.U. von Balthasar, La preghiera contemplativa, citado também por De Lubac.).

4. “Coragem, eu estou aqui!”

Voltemos para concluir a divindade de Cristo. Ela ilumina toda a vida cristã.

Sem a fé na divindade de Cristo:

Deus está longe,

Cristo permanece no seu tempo,

o Evangelho é um dos muitos livros religiosos da humanidade,

a Igreja, uma simples instituição,

a evangelização, uma propaganda,

a liturgia, uma rememoração de um passado que não existe mais,

a moral cristã, um peso que é tudo, menos leve, e um jugo que é tudo, menos suave.

Mas com a fé na divindade de Cristo:

Deus é Emanuel, o Deus conosco,

Cristo, é o Ressuscitado que vive no Espírito,

o Evangelho, a palavra definitiva de Deus para toda a humanidade,

a Igreja, sacramento universal de salvação,

a evangelização, partilha de um dom,

a liturgia, encontro alegre com o Ressuscitado,

a vida presente, o começo da eternidade.

De fato foi escrito: “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna” (Jo 3, 36). A fé na divindade de Cristo nos é particularmente indispensável neste momento para manter viva a esperança sobre o futuro da Igreja e do mundo. Contra os gnósticos, que negavam a verdadeira humanidade de Cristo, Tertuliano elevou, no seu tempo, o grito: “Parce unicae spei totius orbis“, não tirem do mundo a sua única esperança!(Tertulliano, De carne Christi, 5, 3 ;CC 2, p. 881). Nós devemos dizer hoje àqueles que se recusam a acreditar na divindade de Cristo.

Aos apóstolos, depois de ter acalmado a tempestade, Jesus dirigiu uma palavra que repete hoje aos seus sucessores: “Coragem! Sou eu, não tenhais medo “(Mc 6,50).

[Tradução Thácio Siqueira]

O CORAÇÃO NÃO É UMA PRAÇA MAS UM TEMPLO

Evangelho do III Domingo da Quaresma

ROMA, quinta-feira 8 de março de 2012 (ZENIT.org) – Ex 20,1-17

“Naqueles dias, Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: “Eu sou Iahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim (…).

Jo 2,13-25

“Estando próxima a Páscoa dos judeus, Jesus subiu a Jerusalém. No Templo, encontrou os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados. Tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do Templo, com as ovelhas e com os bois; lançou ao chão o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas e disse aos que vendiam pombas: “Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio”. Recordaram seus discípulos do que está escrito: “O zelo por tua casa me devorará”.

Os Judeus interpelaram-no, então, dizendo: “Que sinal nos mostras para agires assim?”. Disseram-lhe, então, os judeus: “Quarenta e seis anos foram precisos para se construir este Templo, e tu o levantarás em três dias?”. Ele, porém, falava do templo do seu corpo. Assim, quando ele ressuscitou dos mortos seus discípulos lembraram-se de que dissera isso, e creram na Escritura e na palavra dita por Jesus”.

Bento XVI, comentando o Evangelho de hoje, escreveu: “Na purificação do templo, Jesus agia em harmonia com a lei, evitando um abuso do templo … a sua reivindicação era mais profunda porque com o seu agir queria dar cumprimento à Lei e aos Profetas”(Jesus de Nazaré, segunda parte, p. 23s).

Sublinhando a ideia do cumprimento da Lei, o Papa quer dizer que cada um dos dez mandamentos (Êxodo 20,1-17), consiste basicamente numa modalidade particular do mandamento do amor. Portanto: cumprimento como plenitude de significado e de observação perfeita, como afirma também Paulo: “A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da Lei” (Rom 13,10).

E eis aqui, de forma coerente, a conclusão de Bento XVI: “Jesus não vem como destruidor; não vem com a espada do revolucionário. Vem com o dom da cura. Dedica-se à todos aqueles que, por causa dos seus males são empurrados para as margens da vida e para as margens da sociedade. Ele mostra Deus como Aquele que ama, e o seu poder como o poder do amor “(idem., p. 34).

Entendemos, portanto, que o zelo que devora o coração de Jesus é a urgência irreprimível do amor, irresistível e transformador como o fogo.

Tinha profeticamente anunciado, alguns séculos antes, o profeta Isaías com estas palavras: “Em Sião os pecadores ficaram apavorados: o tremor se apoderou dos ímpios. Quem dentre nós poderá permanecer junto ao fogo devorador? Quem dentre nós poderá manter-se junto aos braseiros eternos?”(Isaías 33,14-16).

Se esta pergunta retórica pode historicamente fazer pensar na inação dos ‘homens do templo’ (guardas e soldados) que não intervieram em Jerusalém para parar com o gesto do Senhor, ela nos orienta hoje na reflexão sobre os “homens do templo” de hoje, sacerdotes e leigos.

Começamos do catecismo.

Todo cristão batizado sabe, ou deveria saber, quem é Aquele cuja ardente Presença eucarística na “casa do Pai” (a igreja) é indicada apenas por uma fina chama, símbolo da “chama de fogo”, revelada a Moisés (Êx 3,2).

Ele também sabe que o Senhor Jesus, vivo e presente dia e noite na tenda fixa do tarbernáculo, não renunciou de ser o companheiro, o amigo dos nossos passos, como o foi com os Israelitas, no tempo do êxodo, no deserto.

Instituindo o Batismo, de fato, Deus manifestou a sua vontade de habitar no mesmo coração do homem, como íntima e sagrada “tenda do encontro”  onde pode dialogar com Ele.

Somos assim levados de volta para o Evangelho de hoje, que é também o Evangelho da verdade do templo, seja aquele material das nossas igrejas, seja aquele constituído pela pessoa batizada, “Templo do Espírito santo” (1 Cor 6, 19).

E a verdade é esta: o coração do homem não foi criado para ser uma “Praça” pagã, um movimentado mercado de confusão moral e espiritual, mas para ser o sagrado lar, o Templo do Deus vivente. Se em Jerusalém, há dois mil anos, a intenção fundamental da ‘purificação’ feita por Jesus foi aquela de eliminar da praça “o que é contrário ao comum conhecimento e adoração de Deus, (Bento XVI, id.), hoje é o nosso coração que necessita radicalmente da purificação da Palavra de Deus.

Para este fim, por conseguinte, é necessário em primeiro lugar fazer silêncio, dado que:

“Os distúrbios, a escuridão cultural e religiosa que dominam a terra são compostos principalmente do não escutar à Deus, do não acolher a vida que é o Verbo encarnado, aquele que ilumina todo o homem. A sociedade, como tal, rejeita a idéia de um Criador, de um Senhor que nos ama, e pretende organizar a própria vida deixando-o de lado. É a desordem cultural principal do nosso tempo, que resulta em desordem social, injustiças, fome, miséria, perseguições, exploração “(C.M. Martini, Il caso serio della fede, p.88s, tradução minha).

Só no silêncio poderá ser acolhido o feliz e sempre novo anúncio do Evangelho: Deus não está distante, o homem não é uma Praça, o templo do seu coração foi definitivamente purificado e salvo pelo “Templo do corpo de Cristo” (Jo 2 , 21), e a Glória de Deus não se desviará dele nunca mais, apesar da abominação dos ídolos, que ainda se encontra nele. Jesus não é Deus contra nós, mas Deus conosco!

Devora-o um tal zelo de amor pessoal que cada um pode exclamar espantado: Me amou e se entregou por mim” (Gal 2,20).

——–

* Padre Angelo del Favero, cardiologista, em 1978, co-fundou um dos primeiros Centros de Ajuda à Vida em torno do Duomo de Trento, Itália. Tornou-se carmelita em 1987. Foi ordenado sacerdote em 1991 e foi conselheiro espiritual no santuário de Tombetta, perto de Verona. Atualmente dedica-se à espiritualidade da vida no convento Carmelita de Bolzano, junto à paróquia Nossa Senhora do Monte Carmelo.

A VIDA HUMANA É DINAMISMO ESSENCIAL INESGOTÁVEL

Contribuição especial do ex-subprocurador geral da República, Cláudio Lemos Fonteles

BRASILIA, sexta-feira, 9 de março de 2012 (ZENIT.org) – A visão positivista, ainda presente no conduzir-se das pessoas, reduzindo o agir humano ao que pode ser visto e aferido, enclausura os que assim se conduzem numa atitude mecanicista.

A vida humana não pode ser compreendida por perspectiva tão acanhada, típica no pensamento da uniformidade, que não tolera a diversidade, abomina o inesperado, conduzindo-nos quando não ainda à clonagem da espécie humana, mas ao estabelecer padrões comuns de expressão visual.

A vida humana é dinamismo essencial.

Na fecundação – união do espermatozóide com o óvulo – e a partir da fecundação a célula autônoma – zigoto – que assim surge, por movimento de dinamismo próprio, independente de qualquer interferência da mãe, ou do pai, realiza sua própria constituição, bipartindo-se, quadripartindo-se, no segundo dia, no terceiro dia, e assim por diante.

É, portanto, primeiramente embrião, depois feto, bebê, criança, jovem, adulto, velho.

A vida humana é dinamismo essencial.

Justo, se assim compreendida, a vida humana é única e irrepetível.

Não é linear, de modo que sejamos todos nós, no estágio existencial em que nos encontramos, vistos como no traçado imperturbável de uma linha reta.

A vida humana não é assim.

Complexa, surpreendente, imprevisível dota-se de parâmetros próprios a cada etapa do seu ser.

Esse quadro de inesgotabilidade do viver, que fundamenta a dignidade como ínsita ao ser humano, por isso que inviolável, não autoriza seja eliminada a vida humana, em qualquer etapa do seu ciclo existencial.

Bem recentemente, citado em matéria jornalística produzida em nosso País, o pediatra alemão Roberto Wüsthof, a propósito da bebê anencéfala Marcela de Jesus Galante Ferreira, que já completou seu primeiro ano de vida, sentenciou:

“Casos como o de Marcela certamente seriam incluídos nos protocolos de eutanásia na Holanda. Não faz sentido ser diferente. É como se ela fosse um computador sem processador.” (Veja – 15/08/2007 – reportagem da jornalista Adriana Dias Lopes)

Aí está: “É como se fosse um computador, sem processador”.

Esta é a frase, matriz eloqüente de setores empresariais, científicos, políticos e midiáticos, que querem impor o stablishment mecanicista. O  stablishment que reduz a vida humana a algo aferível, coletiva e funcionalmente: “não faz sentido ser diferente”.

A vida humana é dinamismo essencial inesgotável.

Eis porque se impunha ao Procurador-Geral da República o questionamento do artigo 5º, da Lei nº 11.105, que permite o uso de células tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos, para fins terapêuticos.

Não me omiti, quando no exercício do cargo, em fazê-lo.

Não se pode matar a vida, ainda que em estágio embrionário, a pretexto de cura.

A um, porque no caso das células-tronco embrionárias não há, no mundo, a comprovação, inclusive, de resultado terapêutico favorável.

A dois, porque aberto fica amplíssimo horizonte de pesquisas científicas, com as chamadas células tronco adultas, que já apresentam resultados terapêuticos favoráveis.

Aliás, a evolução da ciência é fator inconteste. Hoje, já se sabe que o cordão umbilical é fonte importante à pesquisa da medicina regenerativa, dada a possibilidade real de pluripotência, que encerra.

E mais, em dias recentes, o método científico de Reprogramação Genética de Células Adultas do próprio paciente, encaminha para a obtenção das propriedades de totipotência nas células adultas, sem que se comprometa o embrião humano.

Reitero, a procedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade, que promovi, significa cessaruma única linha de pesquisa, propiciando permaneça presente amplo leque de pesquisas.

Assim, a Ação Direta de Inconstitucionalidade em nada compromete a liberdade de pesquisa, até porque liberdade não há quando signifique eliminar vidas humanas na etapa embrionária.

A vida humana é dinamismo essencial inesgotável.

Do embrião ao ancião seja-nos permitido vivê-la.

Claudio Lemos Fontelles

*

Claudio Fontelles, foi Subprocurador-geral da República, grau mais alto da carreira, atuou no Supremo Tribunal Federal na área criminal. Coordenou a Câmara Criminal (1991) e a antiga Secretaria de Defesa dos Direitos Individuais e Interesses Difusos – Secodid (1987). Escolhido pelo Presidente Luis Inácio Lula Procurador da República dos anos 2003-2005. Lecionou Direito Penal e Direito Processual Penal. Recentemente graduou-se em Teologia pelo Instituto S. Boaventura dos Frades Menores Conventuais. É professor de Doutrina Social da Igreja no curso superior de Teologia da Arquidiocese de Brasília. Aposentou-se do cargo de subprocurador-geral da Repúbica em 15 de agosto de 2008http://www.claudiofonteles.blogspot.com/

O Estado é Laico

Por Reinaldo Azevedo, jornalista da Veja

Escrevi em alguns posts que os valores essenciais do cristianismo certamente conduzem um juiz a um bom caminho — isso se o crucifixo estivesse em alguns tribunais por isso. Mas a razão, como já expliquei, é outra. Sempre que se fala do cristianismo, conjugam-se as mais variadas correntes de difamação da religião, especialmente do catolicismo, que se foram formando ao longo da história. A mais recente — historicamente falando — e mais poderosa, claro, é o marxismo. Atrocidades foram cometidas por autoridades eclesiásticas em quase dois mil anos de história? Foram, sim! E a própria Igreja se debruçou sobre isso.

Uma das técnicas da militância política, que deveria causar repúdio aos historiadores, é distorcer os fatos para vender uma ideologia. Infelizmente, no Brasil e em boa parte do mundo, quando o tema é religião, a irracionalidade predomina… em nome da razão!

Nos colégios, nos cursinhos, nas universidades, professores se referem aos “milhões de mortos da Inquisição”, por exemplo, para tentar criticar não aquela Igreja do passado, mas a do presente. Parece que não há diferença entre as práticas do século 17 e as do século 21!!! Imaginem se todas as barbaridades que os cientistas já cometeram, na comparação com o que sabemos hoje, fossem usadas para considerar a ciência, então, um discurso brutalizante. “Religião não é ciência”, gritará alguém. De fato, a crença não é um objeto que possa ser dissecado à luz das leis da natureza. Mas existem uma ciência teológica e uma ciência moral que remetem ao conjunto de experiências e conhecimentos acumulados no terreno da fé. Adiante.

Ao longo do tempo, por bons e maus motivos, a Igreja foi uma inimiga poderosa de poderosos. Misturou-se e não se distinguiu da política durante um largo período. E foi, nem poderia ser diferente, alvo de difamações. Uma delas diz respeito justamente aos tais “milhões” de mortos da Inquisição. Uma leitora , Tereza Cristina, manda o comentário que segue. Ao responder a ela, respondo a dezenas, talvez centenas de outros comentários de igual teor. Leiam.

Reinaldo, você pode até discordar da Liga Brasileira de Lésbicas é um direito seu. Mas negar parte da história do Cristianismo no seu discurso é inaceitável. As acusações feitas a Liga hoje por você já foram práticas do Cristianismo. Não vamos esquecer da SANTA INQUISIÇÃO: momento que sabemos muitos morreram, foram torturados, sofreram perseguição religiosa e que a proteção da vida não foi lembrada. Seria bom também, se tivéssemos como voltar no tempo e perguntar aos africanos que vieram para o Brasil sobre PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA.Só para lembrar: A Inquisição foi um espécie de Tribunal religioso criado na Idade Média para condenar TODOS que eram contra os dogmas pregados pela Igreja Católica.Mandou para a fogueira milhares de pessoas como você mesmo falou ” crime simplesmente por não concordar com eles. De que mesmo a Liga está sendo acusada???? Contra fatos não há argumentos.

Comento

Em primeiro lugar, não acusei a “Liga Brasileira de Lésbicas” de coisa nenhuma — só de intolerância. Quanto à Santa Inquisição, republico um texto do site católico Veritatis Splendor – Memória e Ortodoxia Cristãs, que põe as coisas nos seus devidos lugares, com as necessárias referências bibliográficas.

Quem ainda estiver disposto a aprender alguma coisa vai se surpreender com o texto. Quem já sabe ficará satisfeito com a divulgação dos fatos — ou vai se zangar porque a mentira lhe é útil. E há sempre aquele que não vai querer aprender nada: “Ah, o Reinaldo está dizendo que a Inquisição foi bolinho”. Atenção!

A fase do Terror, da Revolução Francesa, matou, em um ano, milhares de pessoas — os números variam de 16 mil a 40 mil. Muitas vezes mais do que a Inquisição em quatro séculos!

Fidel Castro fuzilou, sozinho, muito mais do que o Santo Ofício ao longo da história: 17 mil pessoas. Se considerarmos, então, os mais de 80 mil que morreram afogados tentando fugir da ilha… Mao Tse-Tung matou 70 milhões; Stálin, 25 milhões; Hitler, 6 milhões…

Não, senhores! Eu não estou negando que a Igreja tenha praticado brutalidades. Como vocês verão abaixo, no entanto, ela podia ser muito mais branda que os tribunais civis. Mas isso é o de menos. Invariavelmente, os que querem mandar a Igreja, mesmo a de hoje, para o banco dos réus costumam mandar para o trono Robespierre, Fidel, Mao, Stálin…

Leiam o artigo, reflitam, pesquisem.

A Inquisição exterminou 30 milhões de pessoas?

Para muitos estes supostos dados de “milhões de mortes” são as provas claras e literais do obscurantismo e corrupção da Igreja católica durante a “Idade das Trevas” podemos então afirmar a veracidade destes números que pressupõem que um verdadeiro “holocausto” foi promovido por parte do clero da Igreja Católica?

É comum vermos na literatura secular, em filmes e documentários, pior nas escolas do ensino fundamental e médio e até em faculdades e universidades, a afirmativa de que a Igreja “torturou e matou milhares”, alguns dizem milhões de pessoas aniquiladas pela Inquisição. Há também diversos ambientes acadêmicos no Brasil em que é nítido tal interpretação, são muitos autores e professores universitários a partilhar dessas objeções.

É inegável a atuação da Inquisição assim como os julgamentos, qualquer contraposição é uma aberração um erro grotesco de história, a crítica veiculada neste texto é dirigida aos números de mortes e incidentes referentes aos cerca de 386 anos de atuação, deste tribunal eclesiástico.

Muitos podem até dizer que números não importam, contudo ela “matou e torturou”, a questão é que nesta situação os números representam o maior pretexto e fonte de contradições a temática, pois tendem a alimentar e propagar a ideia de uma tragédia histórica, sem controle, um crime, um perverso e criminoso ato, vindo da Igreja contra a humanidade.

Não levando em conta os fatores, o contexto e as posições religiosas da época estaria correto colaborar com estas argumentações e afirmações? Teria sido uma ferramenta de perseguição e extermínio de quem ousava pensar diferente? ou trata-se de posições subjetivas oriundas do homem contemporâneo?

Vale salientar que estas sociedades eram claramente ligadas ao bem e ‘alegria social’ (Pernoud, 1997) e da religião “em função da fé cristã” (Daniel Rops, Vol. III. p. 43), tinham como ferramentas de prevenção, a condenação de grupo ou individuo, para evitar a contaminação de confusões e divisões que ruíam ‘todo o sistema e ordem social da época’ (Gonzaga, 1994) além de evitar a propagação de heresias e divisões entre os fieis na Cristandade, assim os códigos penais abraçavam e previam comumente a tortura e a morte do réu. E o povo entendia que estes eram os princípios jurídicos e inquisidores (cf. Mt 18,6-7) que evitavam a expansão de cismas e heresias.

Mas seriam verdadeiros estes indicies sobre a Inquisição? Ou é maquinação vinda dos inimigos da religião que tiram proveito não só da Inquisição ou das Cruzadas, centram-se também nos erros e faltas morais de alguns filhos da Igreja para fazê-los de “cavalo de batalha na sua guerra contra a religião e para perpetuamente as estarem lançando em rosto à Igreja.” como disse o historiador e Pe. W. Devivier, S.J. Fato que “é da natureza da Igreja provocar ira e ataque do mundo” segundo Hilaire Belloc.

A principal finalidade do artigo não é amenizar os efeitos da Instituição ou fazê-la mais branda, mas trazer a tona os fatos e verdadeiros números da referida instituição, cujos estudiosos sérios testemunham para que possamos construir uma justa interpretação do tema, sem nos veicularmos a nenhuma propaganda anticatólica.

Vamos tomar como referência as Atas do grande Simpósio Internacional sobre a Inquisição, em que 30 grandes historiadores participaram vindos de diversas confissões religiosas, para tratar historicamente da Inquisição, proposta motivada pela Igreja. O Papa João Paulo II afirmou certa vez: “Na opinião do publico, a imagem da Inquisição representa praticamente o símbolo do escândalo”. E perguntou “Até que ponto essa imagem é fiel à realidade”.

O encontro realizou-se entre os dias 29 e 31 de Outubro de 1998. Com total abertura dos arquivos da Congregação do Santo Oficio e da Congregação do Índice. As Atas deste Simpósio, foram anos depois reunidas e apresentadas ao público, sob forma de livro contendo 783 paginas, intitulado originalmente de “L’Inquisione” pelo historiador Agostinho Borromeo, professor da Universidade de La Sapienza de Roma. O mesmo historiador lembrou “Para historiadores, porem, os números têm significado” (Folha de S. Paulo, 16 junho 2004).

As atas documentais do Simpósio, já foram utilizadas em vários obras de historiadores, e continuam a ser, tais documentos são resultados de uma profunda pesquisa sobre os dados de processos inquisitoriais: as seguintes afirmações foram declaradas pelo historiador Agostinho Borromeo.

Sobre a “famigerada e terrível” Inquisição Espanhola:

“A Inquisição na Espanha celebrou, entre 1540 e 1700, 44.674 juízos. Os acusados condenados à morte foram apenas 1,8% (804) e, destes, 1,7% (13) foram condenados em “contumácia”, ou seja, pessoas de paradeiro desconhecido ou mortos que em seu lugar se queimavam ou enforcavam bonecos.”

Sobre as famosas “caças às bruxas”.

“Dos 125.000 processos de sua historia [tribunais eclesiásticos], a Inquisição espanhola condenou a morte 59 “bruxas”. Na Itália. 36 e em Portugal 4.”

E a propaganda de que “foram milhões”.

Constatou-se que os tribunais religiosos eram mais brandos do que os tribunais civis, tiveram poucas participações nestes casos, o que não aconteceu com os tribunais civis que mataram milhares de pessoas.

Sentenças de um famoso inquisidor:

“Em 930 sentenças que o Inquisidor Bernardo Guy pronunciou em 15 anos, houve 139 absolvições, 132 penitências canônicas, 152 obrigações de peregrinações, 307 prisões e 42 “entregas ao braço secular” ([citado em] AQUINO, Felipe. Para entender a Inquisição. 1 ed. Cleofas. Lorena. 2009, p. 23).

O Simpósio conclui que as penas de morte e os processos em que se usava-se tortura, representam números pouco expressivos, ao contrario do se imaginava e foi propagado. Os dados são uma verdadeira demolição e extirpação de muitas ideias falsas e fantasiosas sobre a Inquisição.

“Hoje em dia, os historiadores já não utilizam o tema da inquisição como instrumento para defender ou atacar a Igreja. Diferentemente do que antes sucedia, o debate se encaminhou para o ambiente histórico com estatísticas sérias” (Historiador Agostinho Borromeo, presidente do Instituto Italiano de Estudos Ibéricos: AS, 1998).

Bom que tudo isto tem mudado é sinal de esperança, tomara que haja uma nova reconstrução “hermenêutica”, sendo esta necessidade histórica. Que com uma justa crítica acurada, superem-se as ambiguidades historiográficas.

Pena que as correntes históricas penduram-se e os teóricos antigos, dizem eles os “conceituados” continuam a ser as referencias “fidelíssimas”, assim na prática pedagógica e histórica; seja superior (acadêmica) ou (média e fundamental) ensinos públicos, continua à ritualista tradição a-histórica, não transparente sobre os acontecimentos e de tom feiticista e alienado, incluindo dentre destes, muitos estudiosos, professores, e jornalistas brasileiros e do resto do mundo.

“Há milhões de pessoas que odeiam o que erroneamente supõe o que seja a Igreja Católica” (Bispo americano, John Fulton Sheen).

Referencias:

AQUINO, Felipe. Para entender a Inquisição. 1º ed. Cleofas. Lorena. 2009.

DEVEVIER, W. A Historia da Inquisição, curso de apologética cristã. Melhoramentos, São Paulo, 1925.

L’INQUISIONI. Atas do Simpósio sobre a Inquisição, 1998.

PERNOUD, Régine. A Idade Média: Que não nos ensinaram. Ed. Agir, SP, 1964.

ROPS. Henri-Daniel. A Igreja das Catedrais e das Cruzadas. Vol. III. Ed. Quadrante, São Paulo. 1993

 

As duas faces do amor: ‘eros’ e ‘ágape’

1. As duas faces do amor

Com as prédicas desta Quaresma, eu gostaria de continuar o esforço, iniciado no Advento, de trazer uma pequena contribuição à re-evangelização do Ocidente  secularizado, que constitui nesta hora a preocupação principal de toda a Igreja e, em particular, do Santo Padre Bento XVI.
Há um âmbito em que a secularização age de maneira especialmente difusa e nefasta, e é o âmbito do amor. A secularização do amor consiste em separar o amor humano de Deus, em todas as formas desse amor, reduzindo-o a algo meramente “profano”, onde Deus sobra e até incomoda.
Mas o amor não é um assunto importante apenas para a evangelização, ou seja, para as relações com o mundo. Ele importa, antes de todo o mais, para a própria vida interna da Igreja, para a santificação dos seus membros. É nesta perspectiva que se situa a encíclicaDeus caritas est, do Papa Bento XVI, e é nela que nós também nos colocamos para estas reflexões.
O amor sofre de uma separação nefasta não só na mentalidade do mundo secularizado, mas também, do lado oposto, entre os crentes e, em particular, entre a s almas consagradas. Poderíamos formular a situação, simplificando ao máximo, assim: temos no mundo um erossem ágape; e entre os crentes, temos frequentemente um ágape sem eros.
O eros sem ágape é um amor romântico, mas comummente passional, até violento. Um amor de conquista, que reduz fatalmente o outro a objecto do próprio prazer e ignora toda dimensão de sacrifício, de fidelidade e de doação de si. Não é preciso insistir na descrição desse amor, porque se trata de uma realidade que temos todo dia diante dos nossos olhos, propagandeada com estrondo pelos romances, filmes, novelas, internet, revistas. É o que a linguagem comum entende, hoje, com a palavra “amor”.

Para nós é mais útil entender o que significa ágape sem eros. Na música, existe uma diferenciação que pode nos ajudar a ter uma ideia: a diferença entre o jazz quente e o jazz frio. Eu li certa vez essa caracterização dos dois géneros, mas sei que não é a única possível. O jazz quente (hot) é o jazz apaixonado, ardente, expressivo, feito de ímpetos, de sentimentos e, portanto, de improvisações originais. O jazz frio (cool) é o profissional: os sentimentos se tornam repetitivos, o estro é substituído pela técnica, a espontaneidade pelo virtuosismo.
Com base nessa distinção, o ágape sem eros é um “amor frio”, um amar parcial, sem a participação do ser inteiro, mais por imposição da vontade do que por ímpeto íntimo do coração. Um entrar num cenário predefinido, em vez de criar um próprio, realmente irrepetível, como irrepetível é cada ser humano perante Deus. Os actos de amor voltados para Deus parecem aqueles de namorados desinspirados, que escrevem à amada cartas copiadas de modelos prontos.

Se o amor mundano é um corpo sem alma, o amor religioso praticado assim é uma alma sem corpo. O ser humano não é um anjo, um espírito puro; é alma e corpo substancialmente unidos: tudo o que ele faz, amar inclusive, tem que reflectir essa estrutura. Se o componente humano ligado ao tempo e à corporeidade é sistematicamente negado ou reprimido, a saída será dúplice: ou seguir adiante aos arrastos, por senso de dever, por defesa da própria imagem, ou ir atrás de compensações mais ou menos lícitas, chegando até os dolorosíssimos casos que estão afligindo actualmente a Igreja. No fundo de muitos desvios morais de almas consagradas, não é possível ignorá-lo: há uma concepção distorcida e retorcida do amor.

Temos, então, um duplo motivo e uma dupla urgência de redescobrir o amor na sua unidade original. O amor verdadeiro e integral é uma pérola encerrada entre duas conchas que são o eros e o ágape. Não podem ser separadas, essas duas dimensões do amor, sem destruí-lo, como o hidrogénio e o oxigénio não podem ser separados sem se privarem da água.

2. A tese da incompatibilidade entre os dois amores

A reconciliação mais importante entre as duas dimensões do amor é prática. É aquela que acontece na vida das pessoas, mas, para ser possível, ela precisa começar pela reconciliação entre o eros e o ágape inclusive teoricamente, na doutrina. Isto nos permitirá conhecer finalmente o que é que se entende por estes dois termos tão frequentemente usados e subentendidos.
A importância da questão nasce do fato de existir uma obra que popularizou em todo o mundo cristão a tese oposta da inconciliabilidade das duas formas de amor. É o livro do teólogo luterano sueco Anders Nygren, intitulado Eros e Ágape. Podemos resumir o pensamento dele nestes termos: eros e ágape designam dois movimentos opostos. O primeiro indica ascensão e subida do homem para Deus e para o divino como próprio bem e própria origem; o outro, o ágape, indica a descida de Deus até o homem com a encarnação e a cruz de Cristo, e, portanto, a salvação oferecida ao homem sem mérito nem resposta de sua parte, a não ser a fé e somente a fé. O Novo Testamento fez uma escolha precisa, usando, para exprimir o amor, o termo ágape, e refutando sistematicamente o termo eros.
Foi São Paulo quem recolheu e formulou com mais pureza essa doutrina do amor. Depois dele, ainda segundo a tese de Nygren, essa antítese radical se perdeu para dar lugar a tentativas de síntese. Assim que o cristianismo entra em contacto cultural com o mundo grego e a visão platónica, já com Orígenes, há uma reavaliação do eros, como movimento ascensional da alma rumo ao bem e ao divino, como atracção universal exercitada pela beleza e pelo divino. Nesta linha, o Pseudo Dionísio Areopagita escreverá que “Deus é eros” [1], substituindo com este termo o ágape da célebre frase de João (I Jo, 4,10).

No ocidente, uma síntese análoga foi feita por Agostinho com a doutrina da caritas, entendida como doutrina do amor descendente e gratuito de Deus pelo homem (ninguém falou da “graça” com mais força do que ele), mas também como anseio do homem pelo bem e por Deus. É dele a afirmação: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e inquieto está o nosso coração até descansar em ti” [2]. Também é dele a imagem do amor como um peso que atrai a alma, como por força de gravidade, para Deus, como ao lugar do próprio repouso e prazer [3]. Tudo isso, para Nygren, insere um elemento do amor de si, do próprio bem, e, portanto, de egoísmo, que destrói a pura gratuidade da graça; é uma recaída na ilusão pagã de fazer a salvação consistir numa ascensão a Deus, em vez de na gratuita e imotivada descida de Deus até nós.

Prisioneiros desta impossível síntese entre eros e ágape, entre amor de Deus e amor de si, são, para Nygren, São Bernardo, quando define o grau supremo do amor de Deus como um “amar a Deus por si mesmo” e um “amar a si mesmo por Deus” [4]; São Boaventura, com seu ascensional Itinerário da mente para Deus; e São Tomás de Aquino, que define o amor de Deus infuso no coração do baptizado (cf. Rom, 5,5) como “o amor com que Deus nos ama e nos faz amá-lo” (amor quo ipse nos diligit et quo ipse nos dilectores sui facit) [5]. Isto viria a significar que o homem, amado por Deus, pode, por sua vez, amar a Deus, dar-lhe algo de seu, o que destruiria a absoluta gratuidade do amor de Deus. No plano existencial, ainda de acordo com Nygren, o mesmo desvio acontece na mística católica. O amor dos místicos, com a sua fortíssima carga de eros, nada é, para ele, senão amor sensual sublimado, uma tentativa de estabelecer com Deus uma relação de presunçosa reciprocidade em amor.

Quem rompeu a ambiguidade e devolveu à luz a pura antítese paulina, segundo o autor, foi Lutero. Fundamentando a justificação apenas na fé, ele não excluiu a caridade do momento-base da vida cristã, como o acusa a teologia católica; antes, libertou a caridade, o ágape, do elemento espúrio do eros. À fórmula do “somente a fé”, com exclusão das obras, corresponderia, em Lutero, a fórmula do “somente o ágape”, com exclusão do eros.

Não me cabe estabelecer se o autor interpretou corretamente neste ponto o pensamento de Lutero, que, deve-se dizer, nunca pôs o problema em termos de contraste entre eros e ágape como fez com fé e obras. É significativo, no entanto, que Karl Barth, num capítulo da suaDogmática Eclesial, também chegue ao mesmo resultado que Nygren de um contraste insanável entre eros e ágape. “Onde entra em cena o amor cristão”, escreve ele, “começa de súbito o conflito com o outro amor, e este conflito não tem mais fim” [6]. Eu digo que se isto não é luteranismo, é sem dúvida teologia dialéctica, teologia do “aut-aut”, da antítese, não da síntese.
O contragolpe desta operação é a radical mundanização e secularização do eros. Enquanto certa teologia retirava o eros do ágape, a cultura secular era bem feliz, por sua vez, ao retirar o ágape do eros, ou seja, ao retirar do amor humano toda referência a Deus e à graça. Freud apresentou para isto uma justificativa teórica, reduzindo o amor a eros e o eros a libido, uma mera pulsão sexual que luta contra toda repressão e inibição. É o estágio a que se reduz hoje o amor em muitas manifestações da vida e da cultura, principalmente no mundo do espectáculo.
Dois anos atrás eu estava em Madrid. Os jornais só faziam falar de uma certa mostra de arte na cidade, intitulada As lágrimas do eros. Era uma mostra de obras artísticas de cunho erótico – quadros, desenhos, esculturas – que pretendiam pôr em foco o inseparável vínculo que existe, na experiência do homem moderno, entre eros e thanatos, entre amor e morte. À mesma constatação se chega quando se lê a colectânea de poesias As flores do mal, de Baudelaire, ou Uma temporada no inferno, de Rimbaud. O amor que por natureza deveria levar à vida acaba ao invés levando à morte.

3. Retorno à síntese

Se não podemos mudar de uma vez a ideia de amor que o mundo possui, podemos, sim, corrigir a visão teológica, que, sem querer, a favorece e legitima. É o que fez de maneira exemplar o papa Bento XVI com a encíclica Deus caritas est. Ele reafirma a síntese católica tradicional expressando-a com os termos modernos. “Eros e ágape”, lemos ali, “amor ascendente e amor descendente, não se deixam jamais separar de todo um do outro […]. A fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto ao original fenómeno humano que é o amor, mas aceita o homem todo, intervindo na sua procura pelo amor para purificá-la, destruindo, em paralelo, novas dimensões suas” (7-8). Eros e ágape estão unidos à própria fonte do amor, que é Deus: “Ele ama”, segue o texto da encíclica, “e este seu amor pode ser qualificado certamente como eros, que, no entanto, é também e totalmente ágape” (9).

Entende-se o acolhimento insolitamente favorável que este documento pontifício encontrou mesmo nos ambientes leigos mais abertos e responsáveis. Dá esperança ao mundo. Corrige a imagem de uma fé que toca o mundo em tangente, sem penetrá-lo, com a imagem evangélica da levedura que faz a massa fermentar; substitui a ideia de um reino de Deus que veio julgar o mundo pela de um reino de Deus que veio salvar o mundo, começando pelo eros que é a sua força dominante.

À visão tradicional, própria tanto da teologia católica como da ortodoxa, pode-se dar, creio eu, uma confirmação também do ponto de vista da exegese. Quem sustenta a tese da incompatibilidade entre eros e ágape se baseia no fato de o Novo Testamento evitar com esmero – e, ao parecer, propositadamente – o termo eros, usando em seu lugar sempre e somente ágape (a não ser por algum raro emprego do termo philia, que indica um amor de amizade).

O fato é verdadeiro, mas não são verdadeiras as conclusões que dele se tiram. Supõe-se que os autores do NT estivessem a par tanto do sentido que o termo eros tinha na linguagem comum (o eros assim chamado “vulgar”) como do sentido elevado e filosófico que tinha, por exemplo, em Platão, o chamado eros “nobre”. Na aceitação popular, eros indicava mais ou menos o que indica hoje quando se fala de erotismo ou de filmes eróticos: a satisfação do instinto sexual, um degradar-se mais do que elevar-se. Na aceitação nobre, indicava um amor pela beleza, a força que mantém o mundo e que impulsiona todos os seres à unidade, aquele movimento de ascensão rumo ao divino que os teólogos dialécticos reputam incompatível com o movimento de descida do divino até o homem.

É difícil defender que os autores do NT, dirigindo-se a pessoas simples e de nenhuma cultura, pretendessem lhes falar do eros de Platão. Eles evitaram o termo eros pelo mesmo motivo que o pregador de hoje evita o termo erótico, ou, se o emprega, é somente em sentido negativo. O motivo é que, tanto naquele tempo como agora, a palavra evoca o amor na sua expressão mais egoísta e sensual [7]. A desconfiança dos primeiros cristãos quanto ao eros se agravava ainda pelo papel que ele desempenhava nos desenfreados cultos dionisíacos.

Tão logo o cristianismo entra em contacto e diálogo com a cultura grega daquele tempo, cai por terra de imediato, como já vimos, toda preclusão quanto ao eros. Ele é usado com frequência, nos autores gregos, como sinónimo de ágape, e empregado para indicar o amor de Deus pelo homem, como também o amor do homem por Deus, o amor pelas virtudes e por tudo o que é belo. Basta, para nos convencermos disso, uma simples olhada no Léxico Patrístico Grego, de Lampe [8]. O sistema de Nygren e Barth, portanto, foi construído sobre uma falsa aplicação do assim chamado argumento “ex silentio”.

4. Um eros para os consagrados

O resgate do eros ajuda acima de tudo os enamorados humanos e os esposos cristãos, mostrando a beleza e a dignidade do amor que os une. Ajuda os jovens a experimentar o fascínio do outro sexo não como coisa turva, a ser vivida às costas de Deus, mas, ao contrário, como um dom do Criador para a sua alegria, desde que vivido na ordem querida por Ele. Na sua encíclica, o papa acena ainda para esta função positiva do eros sobre o amor humano quando fala do caminho de purificação do eros, que leva da atracção momentânea ao “para sempre” do matrimónio (4-5).

Mas o resgate do eros deve ajudar também a nós, consagrados, homens e mulheres. Eu acenei no início ao perigo que as almas religiosas correm de um amor frio, que não desce da mente para o coração. Um sol de inverno, que ilumina, mas não aquece. Se eros significa ímpeto, desejo, atracão, não devemos ter medo dos sentimentos, nem muito menos desprezá-los e reprimi-los. Quando se trata do amor de Deus, escreveu Guilherme de Saint Thierry, o sentimento de afeto (affectio) é também graça; a natureza não pode infundir um sentimento assim [9].

Os salmos estão cheios desse anseio do coração por Deus: “A ti, Senhor, eu elevo a minh’alma…”. “A minh’alma tem sede de Deus, do Deus vivente”. “Preste atenção”, diz o autor da Nuvem do não conhecimento, “a este maravilhoso trabalho da graça na tua alma. Ele não é senão impulso imprevisto, que surge sem aviso e aponta directamente para Deus, como uma centelha que se desencarcera do fogo… Golpeie essa nuvem do não conhecimento com a flecha afiada do desejo de amor e não esmoreça, ocorra o que ocorrer” [10]. É suficiente, para tanto, um pensamento, um movimento do coração, uma jaculatória.

Mas tudo isso não nos é bastante e Deus o sabe melhor que nós. Somos criaturas, vivemos no tempo e num corpo; precisamos de uma tela na qual projectar o nosso amor que não seja apenas “a nuvem do não conhecimento”, o véu de escuridão por trás do qual se oculta o Deus que ninguém nunca viu e que habita numa luz inacessível…

A resposta que se dá a esta interrogação nós conhecemos bem: por isso mesmo Deus nos deu o próximo para amarmos. “Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor se torna perfeito em nós. Quem não ama o próprio irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4, 12-20). Mas devemos ficar atentos para não saltar uma fase decisiva: antes do irmão que vemos, há outro que também vemos e tocamos: o Deus feito carne, Jesus Cristo! Entre Deus e o próximo existe o Verbo feito carne, que reuniu os dois extremos numa só pessoa. É nele que o próprio amor ao próximo encontra o seu fundamento: “Foi a mim que o fizestes”.

O que significa tudo isto pelo amor de Deus? Que o objecto primário no nosso eros, da nossa busca, desejo, atracão, paixão, deve ser o Cristo. “Ao Salvador é pré-ordenado o amor humano desde o princípio, como ao seu modelo e fim, como uma urna tão grande e tão ampla que pudesse acolher a Deus […] O desejo da alma é unicamente de Cristo. Aqui é o lugar do seu repouso, porque só Ele é o bem, a verdade e tudo quanto inspira amor”. Não quer dizer restringir o horizonte do amor cristão de Deus a Cristo; quer dizer amar a Deus do jeito que Ele quer ser amado. “O Pai vos ama porque vós me amais” (Jo 16, 27). Não se trata de um amor mediato, quase por procuração, por meio do qual quem ama Jesus “é como se” amasse o Pai. Não. Jesus é um mediador imediato; amando a Ele, amamos, ipso facto, o Pai. “Quem me vê, vê o Pai”; quem me ama, ama o Pai.

É verdade que nem mesmo a Cristo se vê, mas ele existe. Ressuscitou, vive, está connosco, de modo mais real do que o mais apaixonado esposo está com a esposa. Eis o ponto crucial: pensar em Cristo não como uma pessoa do passado, mas como o Senhor ressuscitado e vivente, com quem eu posso falar, a quem eu posso beijar se quiser, certo de que o meu beijo não termina na estampa ou no lenho de um crucifixo, mas num rosto e em lábios de carne viva (ainda que espiritualizada), felizes de receber o meu beijo.

A beleza e a plenitude da vida consagrada depende da qualidade do nosso amor por Cristo. É só o que pode nos defender dos altos e baixos do coração. Jesus é o homem perfeito; nele se encontram, em grau infinitamente superior, todas aquelas qualidades e atenções que um homem procura numa mulher e uma mulher no homem. O amor dele não nos elimina necessariamente a sedução das criaturas e, em particular, a atracção do outro sexo (ela faz parte da nossa natureza, que Ele criou e não quer destruir). Mas nos dá a força para vencer essas atracções com uma atracção mais forte. “Casto”, escreve São João Clímaco, “é quem afasta o eros com o Eros” [11].
Será que tudo isso destrói a gratuidade do ágape, pretendendo dar a Deus alguma coisa em troca do seu coração? Anula a graça? De jeito nenhum. Antes, a exalta. O que, afinal, neste mundo, damos a Deus se não o que recebemos dele? “Nós amamos porque Ele nos amou primeiro” (1 Jo 4, 19). O amor que damos a Cristo é o seu próprio amor por nós, que devolvemos a Ele, como o eco nos devolve a nossa voz.

Onde está então a novidade e a beleza deste amor que chamamos eros? O eco reenvia para Deus o seu próprio amor, mas enriquecido, colorido e perfumado com a nossa liberdade. E é tudo o que Ele quer. A nossa liberdade lhe paga tudo. E não só isto, mas, coisa inaudita, escreve Cabasilas, “recebendo de nós o dom do amor em troca de tudo o que Ele nos deu, Ele ainda se reputa nosso devedor” [12]. A tese que contrapõe eros e ágape se baseia em outra conhecida contraposição: a contraposição entre graça e liberdade, e, mais ainda, na negação da liberdade no homem decaído.

Eu procurei imaginar, Veneráveis padres e irmãos, o que diria Cristo ressuscitado se, como fazia na vida terrena, quando entrava aos sábados numa sinagoga, viesse agora sentar-se aqui, no meu lugar, e nos explicasse em pessoa qual é o amor que Ele deseja de nós. Quero compartilhar com vocês, com simplicidade, o que eu penso que Ele diria. Pode nos servir para o nosso exame de consciência sobre o amor:
O amor ardente:

É colocares-me sempre em primeiro lugar.
É procurares-me alegrar em todo momento.
É confrontares teus desejos com o meu desejo.
É viveres como meu amigo, confidente, esposo, e seres feliz assim.
É te inquietares ao pensamento de ficar um pouco longe de mim.
É seres repleto de felicidade quando estou contigo.
É estares disposto a grandes sacrifícios para nunca me perder.
É preferires viver pobre e desconhecido comigo a rico e famoso sem mim.
É falares comigo como ao amigo mais amado em todo momento possível.
É te confiares a mim olhando para o teu futuro.
É desejares perder-te em mim como meta do teu existir.

Se vocês acharem, como eu acho, que estamos muito longe dessa situação, não nos desencorajemos. Temos alguém que pode nos ajudar a chegar lá se pedirmos sua ajuda. Repitamos com fé ao Espírito Santo: Veni, Sancte Spiritus, reple tuorum corda fidelium et tui amoris in eis ignem accende: Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor.

[Traduzido do original em italiano por ZENIT]
Notas:
(1) Pseudo Dionísio Areopagita, Os nomes divinos, IV,12 (PG, 3, 709 em diante.)
(2) S. Agostinho, Confissões I, 1.
(3) Comentário ao evangelho de João, 26, 4-5.
(4) Cf. S. Bernardo, De diligendo Deo, IX,26 –X,27.
(5) S. Tomás de Aquino, Comentário à Carta aos Romanos, cap. V, liç.1, n. 392-293; cf. S. Agostinho, Comentário à Primeira Carta de João, 9, 9.
(6) K. Barth, Dogmática eclesial, IV, 2, 832-852.
(7) O sentido que os primeiros cristãos davam à palavra eros se deduz do famoso texto de S. Inácio de Antioquia,  Carta aos Romanos, 7,2: “O meu amor (eros) foi crucificado e não há em mim fogo de paixão…não me atraem o nutrir corrupção e os prazeres desta vida”. “O meu eros” não indica aqui Jesus crucificado, mas “o amor de mim mesmo” , o apego aos prazeres terrenos, na linha do paulino “Fui crucificado com Cristo, não sou mais eu que vivo” (Gal 2, 19 s.).
(8) Cf. G.W.H. Lampe,  A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1961, pp.550.
(9) Guilherme de St. Thierry, Meditações, XII, 29 (SCh  324, p. 210).
(10 Anónimo, A nuvem do não conhecimento, trad. Italiana, Ed. Áncora, Milão, 1981, pp. 136.140.
(11) S. João Clímaco, A escada do paraíso, XV,98 (PG 88,880).
(12) N. Cabasilas, Vida em Cristo, VI, 4 .

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por Frei Raniero Cantalamessa, Pregador do Vaticano *